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"O que me faz viver é tão intenso que até me perco se explicar. O que me faz viver é tão profundo, mas me vê no mundo, no singular. O que me faz viver vai além da lógica. É maior do que a amplitude cósmica, que o meu pensar. O que me faz viver, eu sei, é isto: de Jesus, o Cristo, o amar." [Sérgio Pimenta]

quarta-feira, 13 de abril de 2011

A CIDADE ESCONDIDA E O DEUS AUSENTE


Até aqui não havia conseguido ponderar sobre os acontecimentos da última quinta-feira (7/04/11). Não havia entusiasmo para arguir ou tecer uma análise. Ainda pasmo e paraliso de terror cada vez que refaço em minha mente as cenas que a mídia não se cansa de narrar. Freud dizia que estamos perpetuamente conspirando em segredo contra nós mesmos. A morte estúpida de crianças em uma escola me faz desconfiar que tal conspiração está cada vez mais explícita.

Em um de seus comentários arbitrários, [Arnaldo Jabor ] citava a carta do assassino enfatizando as partes onde ele falava de “puros e impuros”, “Deus”, “Jesus” e dava recomendações a respeito de seu próprio funeral. Jabor aproveita aquela carta para traçar um histórico da religiosidade humana e suas nefastas conseqüências, agregando, como de praxe, religiosidade e Deus a um único pacote. Por fim arrematava seu comentário com a asseveração de que, apesar de toda a religiosidade, Deus está cada vez mais ausente.

Ora, sejamos mais práticos. Era, na verdade, um sujeito esquizofrênico, solitário, abandonado de todos os lados, perseguido cruelmente na escola por ser “estranho”. Sua carta era uma sucessão de delírios. Ele não professava nela nenhuma religião específica, apenas religiosidade. Neste episódio macabro, aquele sujeito psicótico e atormentado foi apenas o executor. O autor, na verdade, não tem cara. Está presente em instituições como escolas, empresas, ambientes religiosos e na mídia.

O que acontece, de fato, é que este é um mundo de retribuição, em que ninguém ama quem não tem nada a oferecer. Quem são nossos favoritos? Os notáveis, os talentosos, os destacados, os fluentes, os afluentes, os bonitos, os ricos, os famosos, os sábios, os afinados, os inteligentes, os espirituais. Quanto mais admiráveis nos parecem as qualidades de alguém, mais naturalmente, mais inevitavelmente essa pessoa parecerá merecedora do nosso amor.

Aqueles que não têm alguma competência para oferecer: os feios, os desajeitados, os que não sabem falar, os que não sabem escrever, os que não sabem jogar bola, os que não sabem agradar intuem por sua vez que nunca serão amados de forma unânime e intensa como os notáveis. Não têm competências em grau ou quantidade suficientes para merecer nosso amor, e sabem disso.

Nossa tendência mais natural é amar as pessoas pelo que são capazes de fazer, seja essa capacidade efetiva ou potencial. Nisso consiste o que também dou o nome de religiosidade: não amamos as pessoas, amamos suas competências. A religiosidade humana não se resume apenas àquela religiosidade talhada a mão, professada em ambientes ditos sagrados, onde se aglomeram devotos. Trata-se de uma religiosidade mais tosca, não lapidada, esperando receber um formato. Mais ou menos como na carta do sujeito. Para ele as distinções se resumem a “puros e impuros”. Para nós, as distinções mais comuns se baseiam em bonitos e feios, inteligentes e tapados, normais e estranhos... a lista é inesgotável.

A religiosidade não é, portanto, um privilégio dos que se organizam sob um punhado de crenças. A religiosidade é intrínseca ao ser humano, seja ele místico ou agnóstico. É formato do mundo, com o qual não se pode conformar, porque é cármico, é recompensalista e cruel. E neste sistema Deus foi convidado a se retirar, de modo que, é lógico, está ausente. Pois nossa vida é, de cima a baixo, da infância à velhice, da manhã à noite, do trabalho ao lazer, mera resposta condicionada às exigências feitas sobre nós pelos outros e por um meio-ambiente criado pelo homem.

Mas acho que o mundo ainda pode ser salvo disso, e quero explicar como, mas preste atenção porque só vou dizer uma vez.

É necessário em primeiro lugar que se entenda que (e porque) a situação está cada vez mais desesperadora do que já esteve. O mundo está duas vezes mais difícil de salvar do que, digamos, no tempo de Jesus, e não é só porque há mais gente para ser salva. Tanto a salvação do mundo quanto a específica dificuldade presente estão ligadas à qualidade das relações entre as pessoas.

Há dois mil anos, para salvar o mundo, bastava convidar as pessoas a abraçarem uma forma radical e revolucionária de convivência. Hoje em dia é preciso lembrá-las, em primeiro lugar, do que é convivência, que há um mundo possível determinado pelas relações autônomas e criativas entre as pessoas, um mundo louquíssimo impulsionado pela graça fragilíssima da camaradagem e não pela sociedade de consumo, pela internet, pelos reality shows, pelos times de futebol, pela marca da roupa, pelo modelo do carro, pelo peso onipresente das pressões familiares, religiosas, sexuais, econômicas, raciais e políticas.

Jesus viveu naturalmente para denunciar a religiosidade humana. Ele convidava, de forma singela, a que adotássemos um novo e notável critério, que é incrivelmente, a ausência de qualquer critério. O Filho do Homem desafia-nos a ser nisso singulares (leia-se santos) como Deus é, disparando amor arbitrariamente como metralhadoras, abandonando definitivamente os critérios usuais de competência. Essa regra divina pode ser expressa da seguinte forma: Ninguém merece, por isso todos podem ter.

Portanto, desiluda-se por completo de todas as iniciativas comunitárias ou governamentais, por mais bem-intencionadas que sejam, e raramente são. A salvação não virá de ONGs ou OGs, Gogues ou Magogues, poderes ou potestades. A salvação não virá de igrejas, assembléias legislativas, organizações de bairro, sindicatos, asilos, orfanatos ou campanhas de assistência humanitária. Se eu e você não fizermos, ninguém vai fazer. Absolutamente ninguém vai fazer.

“Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade edificada sobre o monte.”

Mateus 5:14

Não se iluda, isso não é função de nenhum grupo específico. Qualquer um pode trazer luz ao mundo, qualquer um. Mas na maior parte do tempo Deus não existe, quando a situação aperta ele passa a estar ausente e o evangelho é uma farsa. Não se pode esconder uma boa-nova que se aplica a qualquer um, por isso, quando não atinge indiscriminadamente a todos, a cidade não está sobre o monte, e pode ser facilmente escondida.