"O que me faz viver é tão intenso que até me perco se explicar.
O que me faz viver é tão profundo, mas me vê no mundo, no singular.
O que me faz viver vai além da lógica. É maior do que a amplitude cósmica, que o meu pensar.
O que me faz viver, eu sei, é isto: de Jesus, o Cristo, o amar." [Sérgio Pimenta]
"Quando Jesus viu aquelas multidões, subiu um monte e sentou-se. Os seus discípulos chegaram perto dele, e ele começou a ensiná-los..."
(Mateus 5 . 1 - 2)
...E nunca mais nos esquecemos o que é felicidade...
Passamos a nos considerar espiritualmente pobres, sabendo que nossa riqueza é Ele.
Sabemos que nossa alma é sondada por Ele, por isso choramos. Não um choro de medo ou culpa, mas um choro de alívio, de penitência, de dependência. Aprendemos a nos lançar em Seus braços, Ele nos consola de toda a dor da alma.
Nos tornamos mansos e humildes, imitando espontaneamente a Ele mesmo. Somos singulares como ele é singular.
Esquecemos o que é desespero, ansiedade, pois não poderíamos acrescentar nem um segundo a mais ao nosso tempo de vida. Então achamos descanso para as nossas almas. Ele nos prometeu uma terra de descanso.
Nossa fome e sede, nossas pulsões mais involuntárias passaram a ser a justiça. A justiça passou fluir de nosso interior e deixou de ser performance. Nossa justiça agora excede, ultrapassa a dos santos e carolas. Nossa justiça não é religiosa, nem política, nem ideológica. Não há um tribunal na terra que faça vigorar nossa justiça. Nossa justiça é subversiva, é espontânea. Nossa justiça é o amor. Tudo é nivelado pelo amor. Seremos fartos, Ele disse.
Sabendo que nossa vida é fruto apenas de sua graça, não economizamos perdão. Somos espontâneos e sinceros em perdoar. Não sabemos mensurar quanto vale o perdão, por isso não podemos retê-lo.
Deixamos que ele limpasse nossa mente e coração dos sistemas de barganha desse mundo - e não passamos um dia sequer sem ver a Deus. Incrível como o encontramos onde menos se espera...
Carregamos a paz conosco. As coisas mudam significativamente onde chegamos. Outro dia nos chamaram de Filhos de Deus.
Por causa disso também somos perseguidos. Mas não nos angustiamos. Ele nos prometeu Seu Reino.
Quando isso deixará de ser utopia?
...Porque não desmascaramos a “felicidade” que se conhece no mundo, com a Felicidade que o mundo não conhece?
"Eu estou contente em unir-me com vocês no dia que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação.
Cem anos atrás, um grande americano, na qual estamos sob sua simbólica sombra, assinou a Proclamação de Emancipação. Esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchados nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros. Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre. Cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação. Cem anos depois, o Negro vive em uma ilha só de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos depois, o Negro ainda adoece nos cantos da sociedade americana e se encontram exilados em sua própria terra. Assim, nós viemos aqui hoje para dramatizar sua vergonhosa condição.
De certo modo, nós viemos à capital de nossa nação para trocar um cheque. Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da Independência, eles estavam assinando uma nota promissória para a qual todo americano seria seu herdeiro. Esta nota era uma promessa que todos os homens, sim, os homens negros, como também os homens brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis de vida, liberdade e a busca da felicidade. Hoje é óbvio que aquela América não apresentou esta nota promissória. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com "fundos insuficientes".
Mas nós nos recusamos a acreditar que o banco da justiça é falível. Nós nos recusamos a acreditar que há capitais insuficientes de oportunidade nesta nação. Assim nós viemos trocar este cheque, um cheque que nos dará o direito de reclamar as riquezas de liberdade e a segurança da justiça.
Nós também viemos para recordar à América dessa cruel urgência. Este não é o momento para descansar no luxo refrescante ou tomar o remédio tranqüilizante do gradualismo. Agora é o tempo para transformar em realidade as promessas de democracia. Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da justiça racial. Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus.
Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 1963 não é um fim, mas um começo. Esses que esperam que o Negro agora estará contente, terão um violento despertar se a nação votar aos negócios de sempre.
Mas há algo que eu tenho que dizer ao meu povo que se dirige ao portal que conduz ao palácio da justiça. No processo de conquistar nosso legítimo direito, nós não devemos ser culpados de ações de injustiças. Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo da xícara da amargura e do ódio. Nós sempre temos que conduzir nossa luta num alto nível de dignidade e disciplina. Nós não devemos permitir que nosso criativo protesto se degenere em violência física. Novamente e novamente nós temos que subir às majestosas alturas da reunião da força física com a força de alma. Nossa nova e maravilhosa combatividade mostrou à comunidade negra que não devemos ter uma desconfiança para com todas as pessoas brancas, para muitos de nossos irmãos brancos, como comprovamos pela presença deles aqui hoje, vieram entender que o destino deles é amarrado ao nosso destino. Eles vieram perceber que a liberdade deles é ligada indissoluvelmente a nossa liberdade. Nós não podemos caminhar só.
E como nós caminhamos, nós temos que fazer a promessa que nós sempre marcharemos à frente. Nós não podemos retroceder. Há esses que estão perguntando para os devotos dos direitos civis, "Quando vocês estarão satisfeitos?"
Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial. Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados com a fadiga da viagem, não poderem ter hospedagem nos motéis das estradas e os hotéis das cidades. Nós não estaremos satisfeitos enquanto um Negro não puder votar no Mississipi e um Negro em Nova Iorque acreditar que ele não tem motivo para votar. Não, não, nós não estamos satisfeitos e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem abaixo como águas de uma poderosa correnteza.
Eu não esqueci que alguns de você vieram até aqui após grandes testes e sofrimentos. Alguns de você vieram recentemente de celas estreitas das prisões. Alguns de vocês vieram de áreas onde sua busca pela liberdade lhe deixaram marcas pelas tempestades das perseguições e pelos ventos de brutalidade policial. Você são o veteranos do sofrimento. Continuem trabalhando com a fé que sofrimento imerecido é redentor. Voltem para o Mississippi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para Louisiana, voltem para as ruas sujas e guetos de nossas cidades do norte, sabendo que de alguma maneira esta situação pode e será mudada. Não se deixe caiar no vale de desespero.
Eu digo a você hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã. Eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.
Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença - nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais.
Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos desdentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça.
Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!
Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia no Alabama meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje!
Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta.
Esta é nossa esperança. Esta é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, defender liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livre. Este será o dia, este será o dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo significado.
"Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto.
Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos,
De qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade!"
E se a América é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro.
E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da montanha de New Hampshire.
Ouvirei o sino da liberdade nas poderosas montanhas poderosas de Nova York.
Ouvirei o sino da liberdade nos engrandecidos Alleghenies da Pennsylvania.
Ouvirei o sino da liberdade nas montanhas cobertas de neve Rockies do Colorado.
Ouvirei o sino da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia.
Mas não é só isso. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia.
Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee.
Ouvirei o sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi.
Em todas as montanhas, ouviu o sino da liberdade.
E quando isto acontecer, quando nós permitimos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho spiritual negro:
"Livre afinal, livre afinal.
Agradeço ao Deus Todo-Poderoso, nós somos livres afinal."
Três diretores da escola também aderiram à ação. 'Não dá pra explicar, não. Me senti acolhido', falou aluno com câncer.
"Estudantes do ensino médio de uma escola em Governador Valadares, na Região do Vale do Rio Doce de Minas Gerais, rasparam o cabelo para apoiar um colega de sala que faz tratamento para curar um câncer. Eles organizaram uma surpresa para o garoto de 17 anos, que acabou de passar pelas primeiras sessões de quimioterapia. A ação foi filmada nesta segunda-feira (30) e postada na internet.
“Fiquei meio sem ação. Só consegui rir. Quem não ficaria?", disse Arthur Gonçalves ao G1, contando o que sentiu ao abrir a porta da sala e encontrar os amigos com os cabelos raspados. Ele elogiou a atitude da turma e disse que se sentiu muito acolhido pelos amigos. “Não dá pra explicar, não. Me senti acolhido”, completou, dizendo que a surpresa trouxe motivação e força para continuar o tratamento.
Gonçalves está no terceiro ano e vai tentar vestibular para Engenharia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele enfrenta a doença com o apoio da família e da namorada.
O gesto foi emocionante, segundo a mãe dele. “A atitude dos meninos não foi comum. Foi uma coisa tão alto astral. Fizeram para que ele não se sentisse excluído por estar careca”, disse a mãe. Ainda segundo ela, as garotas da sala também se mobilizaram e acompanharam os colegas até o salão onde cortaram o cabelo.
O câncer, segundo a família, foi descoberto por acaso numa ida ao cabeleireiro. Ao perceber o caroço, ele foi ao médico e uma biopsia contatou um Sarcoma de Ewing na cabeça. O tratamento começou há 21 dias.
A ação do corte de cabelo coletivo foi toda idealizada pelos estudantes, segundo o diretor da escola Rodrigo Cunha. Mas ele e mais dois diretores também resolveram cortar os cabelos. “Resolvemos entrar pelo espírito de solidariedade, em apoio ao aluno e, principalmente, para ele não se sentir diferente da gente. Principalmente por isso. Para ele sentir um clima harmonioso ao regressar às aulas”, completou. Ainda segundo Cunha, o caso gerou uma boa notícia relacionada à educação. “A gente vê tantas tragédias, coisas ruins”, disse.
O vídeo postado na internet já foi visto por mais de 26 mil internautas em quatro dias. Um ex-aluno da escola assistiu ao vídeo em uma rede social e se emocionou com o caso. “Gostaria muito de partilhar a alegria profunda que senti quando soube da história. É uma motivação para as pessoas”, disse Victor Teixeira Aguiar."
Essa matéria vi através do Facebook do Júnior do Crer e Pensar, achei comovente a mobilização destes alunos, principalmente neste contexto onde nas escolas tem imperado a violência e a discriminação através do bulling. Imaginar que sempre haverá saídas para se chegar ao coração humano, é algo a se lutar sempre.
Semana passada, no meu ônibus de todas as manhãs, pude presenciar uma conversa incomum. Incomum porque na "civilizada" cidade em que eu moro, três estranhos normalmente não conversam em voz alta dentro de um coletivo sobre seja o que for, e estava claro que os três protagonistas eram isso mesmo, desconhecidos entre si, trocando opiniões com a desajeitada retórica de quem percebe ter uma audiência cativa.
"No meu tempo", dizia o veterano do trio, um baixinho grisalho que aparentava ser mais velho do que os sessenta e poucos anos que em determinado momento afirmou ter, "quando eu cheguei em 76 no Rio, a coisa não era assim. Tinha emprego pra todo mundo. Eu ganhava por semana, chegava o final de semana e eu recebia 600, 700 reais, réis na época, que a gente gastava e ainda sobrava pra semana seguinte. O sujeito saía de um emprego e já tinha outro esperando ali na esquina. A coisa era diferente, eu pude até construir alguma coisa. Mas agora, do jeito que vão as coisas, nesses últimos vinte anos não deu pra fazer nada".
Olhei de relance para o velho, que numa rápida avaliação não me pareceu o tipo que tivesse construído alguma coisa, mesmo vinte anos atrás.
"Pois já diz o meu avô, ele lutou na Segunda Guerra", retomou depressa o segundo interlocutor, trinta e tantos anos de idade, cabelos pretos engomados, o que falava mais e mais alto dos três, "que pra consertar mesmo esse país era só mesmo colocando os militares na rua. Tirar tudo que é deputado e vereador e deixar só os militares e o presidente no governo. Fechar o Palácio, deixar um vereador ou outro e fazer essa gente trabalhar o dia inteiro. Tem vereador aí ganhando quinze mil reais pra não fazer nada. Acabar com essa roubalheira, e vê se o país não vai pra frente".
O velhinho concordou de imediato, e o terceiro participante, um jovem prematuramente barrigudo que usava óculos e barba por fazer, evidentemente mais politizado e convicto de não nutrir opiniões tão simplistas, calou e deu um meio sorriso.
"Pois com os bilhões que gastam esses deputados", concluiu o velho, empolgado pela sensatez da sua argumentação, "imagine o que não dava pra fazer".
Enquanto eu tentava assuntar o mais desapaixonadamente que podia as eventuais vantagens e riscos de uma rigorosa intervenção militar, o segundo interlocutor, o falador, voltou a falar.
"Tem um cara que trabalha comigo que veio da China. Ele disse que na China, se alguém rouba, o sujeito é algemado em praça pública e leva um tiro na cabeça, e ainda vão cobrar a bala da família".
"Pois aqui deveria ser assim", concordou na mesma hora o velhinho, empolgadamente.
O terceiro, o jovem, claramente incomodado pelo rumo reacionário que a conversa estava tomando, não conseguiu mais ficar quieto.
"É, mas se fosse tão bom lá ele não teria vindo pra cá".
O segundo entendeu e não ousou responder, mas o velhinho tentou impor a sua própria lógica.
"É" disse ele. "Essa gente ouve que aqui é bom, que aqui é primeiro mundo, e vem pra ver como é. Depois vem a decepção".
"Só sei que o Brasil é muito complicado", voltou o segundo. Sem interrupção, para preencher o vácuo, ele lançou essa: "A culpa toda é mesmo dos estrangeiros que vieram aqui colonizar. Vieram, como diz o outro, roubar as nossas terras".
"Pera lá", retrucou o jovem, que a essa altura não estava disposto a deixar passar mais nada. "Você é descendente de europeus. Você não tem como dizer que eles vieram roubar 'as nossas terras'. Você não é descendente dos índios".
"Sou descendente de espanhóis", reconheceu o outro. E arrematou, como se explicasse alguma coisa: "Mas se pelo menos tivesse sido um povo só".
A platéia ao redor guardava desinteressado silêncio, entre um solavanco e outro, e quem deu a última palavra foi ele mesmo, o falador.
"Só sei que esse país não tem mais jeito", disse ele. "A gente vai morrer e daqui a cinquenta anos isso aqui vai estar a mesma coisa".
O jovem e o velho, sem acrescentarem nada à discussão e sem se despedirem, desceram no ponto seguinte. Ficamos só eu, que não havia dito nada, e o falador, que agora desviava os olhos de todos porque não tinha com quem conversar.
Sem deixar de observar impassivelmente a paisagem urbana que passava janela afora (eu, como todos os outros, não havia dado indicação alguma de que tinha estado prestando atenção. Estávamos aparentemente acima daquele tipo de coisa), fiquei tentando diagnosticar o que naquele trecho roubado de conversa havia me perturbado ao ponto de não conseguir tirá-lo da cabeça.
Tive de concluir que, extraídos os lugares-comuns, três questões levantadas naquela conferência coletiva haviam colocado minha cabeça para funcionar: a menção de passagem à Segunda Guerra, uma das minhas obsessões mais caras, a questão da diversidade dos povos na formação do país, e as implicações da expressão "como diz o outro".
Aproveito esse pretexto, então, para expor certas impressões pessoais que me são muito caras e talvez não tenha oportunidade de deixar registradas em outro lugar. Só algumas dizem respeito ao Brasil. Mesmo que eu e você não estejamos no mesmo ônibus, essas impressões talvez sejam de interesse coletivo. Mesmo se fazendo de desentendido, você pode querer saber.
Gosto muito, para minha vergonha, do jeitão do brasileiro (digo "jeitão" no esforço de evitar abstrações ainda maiores, abominações como "povo brasileiro"). Não quero defender e não tenho como justificar o nosso desempenho econômico e político, mas não são esses, deixo logo claro, os quesitos que levo em conta na minha avaliação.
Devo admitir, por outro lado, que não há como separar uma coisa da outra: é nosso jeitão como povo que determina em última instância a natureza peculiar, para dizer pouco do nosso desempenho econômico e político. Não vou dizer que para se produzir um país verdadeiramente bem-sucedido nas arenas econômica e financeira requer-se um povo tão insuportável quanto o norte-americano, mas, pensando bem, acabei de dizer. Para se gerar um país improvável como o Brasil, um imenso e sublimado Portugal, um gigante marginal, pacato, generoso, reflexivo e submisso, requer-se um povo tão absurdo e tão impagável quanto o nosso.
No desenrolar do enredo étnico, nos anais da destilação dos povos, o brasileiro é talvez o resultado mais prodigioso. Por todos os testemunhos que contam (o meu), o mais inclassificável, mais redundante e subutilizado, ao mesmo tempo o mais e o menos presunçoso de todos.
O paradoxo está em que somos um dos povos menos proeminentes da história. Deixamos, em quinhentos anos, pegada nenhuma que não seja de chuteira. Nenhuma bandeira fincada, nenhum número importante, nenhum nome de destaque, nenhuma causa exageradamente meritória, nenhuma revolução de monta, nem um conflito que mereça lugar nas crônicas do futuro. Mais ou menos como Portugal na periferia da Europa, passamos nossa história sem quaisquer ocorrências especiais, à margem do que acontece no resto mundo, porque, por definição, nada acontece no Brasil. Se acontece, foi fora daqui.
Somos uma nação de voyeurs, um dos povos mais bem informados do mundo, mas residentes no mirante dos fatos alheios, sobrevivendo com injeções regulares de cinema e noticiários estrangeiros. Como o PopulardacrônicadeVeríssimo, somos o curioso que aparece em segundo plano quando alguém está dando uma entrevista na rua a um repórter de televisão. É sempre "o outro" que opina, não a gente: como diz o outro. Somos meros observadores desinteressados no meio dessa confusão.
Assistimos com perplexidade ao desfile de problemas internacionais, na bem-intencionada tentativa de compreender o que na nossa ótica faz pouco ou nenhum sentido. Pois, aparentemente, nenhum dos conflitos que impulsionam as agendas internacionais nos movem ou nos dizem respeito: o partidarismo, o fanatismo religioso, a ambição territorial, a devoção a idéias, as obsessões éticas. Nenhum desse motores nos motiva ou nos faz seguir adiante. Somos literalmente hours-concours, fora da competição, mais de cem milhões de personagens complexos perdidos num enredo sem conflito, reclinados com enfado e alguma volúpia na proverbial mas apropriada imagem do berço esplêndido. Eternamente.
Sem virtude, mas também sem ambição. Talvez estejamos nos preservando para um momento em que nossos recursos especiais sejam realmente necessários. Como o personagem de Chico Buarque, passamos pela vida nos reservando para ocasião oportuna.
"Quem me vê sempre parado, Distante garante que eu não sei sambar... Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tô só vendo, sabendo, Sentindo, escutando e não posso falar... Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu vejo as pernas de louça Da moça que passa e não posso pegar... Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Há quanto tempo desejo seu beijo Molhado de maracujá... Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
E quem me ofende, humilhando, pisando, Pensando que eu vou aturar... Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
E quem me vê apanhando da vida, Duvida que eu vá revidar... Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu vejo a barra do dia surgindo, Pedindo pra gente cantar... Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tenho tanta alegria, adiada, Abafada, quem dera gritar... Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Todo discurso tem algum potencial para gerar a polarização, mas reservamos para alguns uma potência tanto particular quanto arbitrária. Assuntos que despertam opiniões ao mesmo tempo inflamadas e opostas são em geral os assuntos que convém evitar. Em nome da paz ou da covardia, é simplesmente mais fácil não falar sobre eles, sob o risco de acender a indignação de gente que habita com muita convicção cada um dos polos que se condenam.
Porém também é verdade que não elegemos os discursos polarizadores ao acaso. Os assuntos que elegemos como polêmicos revelam muito mais sobre nós do que gostaríamos. Se você acha de fato importante saber e discutir em que ponto de um ser humano adulto outro ser humano adulto escolhe colocar o seu órgão sexual, na intimidade de seu quarto e em seu tempo livre, se é a esse tipo de investigação criativa que você está ponderando dedicar uma parte substancial do seu tempo, esse é problema sexual seu. Como uma vez aprenderam homens respeitáveis ao redor de uma mulher adúltera, o comportamento verdadeiramente inquietante é o que faz da sexualidade do outro uma bandeira e um problema para si mesmo. É aqui que jaz a verdadeira perversão.
Porém o problema com os discursos polarizadores é que aparentemente não há como apaziguar a tensão que produzem. Se você deixa de se pronunciar a respeito, nada de fato muda e a tensão permanece. Se você escolhe se pronunciar, tudo que consegue fazer é atiçar a fogueira, demarcando e acentuando a distância entre os grupos antagonistas.
Eu mesmo tenho opiniões muito severas a respeito desse e de outros assuntos, e já achei que a mera exposição de minha iluminada opinião poderia contribuir para mais do que meramente acentuar o problema. Outros já pensaram como eu. Porém, como descobriu Pedro diante de um auditório de incircuncisos, nossas convicções podem muito bem ser redimidas, isto é, revistas pelas nossas próprias histórias.
O propósito desta nota é contar o que sei a respeito de um homem chamado Andrew Marin, e que sei porque já o li contando essa história muitas vezes.
Andrew (americano, popular, desportista amador) foi até seus anos de ensino médio um cristão convicto e um homófobo militante, daqueles que se rebaixam sem hesitação à intimidação física e verbal. Não deve haver dúvida, do mesmo modo, de que Marin entendia essas duas vocações (seu cristianismo ardente e seu desprezo ativo pelos homossexuais) como manifestações de uma mesma paixão pela verdade.
Sua vida teria sido mais simples se na época de colégio seus três melhores amigos de infância (duas garotas e um rapaz) não tivessem confiado nele o bastante para fazerem, um a um e sem saberem um do outro, a mesma confissão: "Andrew, posso te contar uma coisa? Por favor, não conte pra ninguém, mas eu sou gay".
Foi assim que, num intervalo de três meses, Andrew Marin encontrou-se pela primeira vez com seus três únicos amigos e, como bom cristão, cortou todo laço com eles. Perdeu-os porque eram homossexuais.
Marin mergulhou num estado de profunda perplexidade (problema que acomete a muitos santos cristãos). Seu mundo havia sido miseravelmente subtraído debaixo de seus pés, e ele passou a requerer do seu Deus e da sua Bíblia uma explicação e uma solução. Ele queria de volta o mundo das suas seguranças anteriores, e exigia que Deus lhe revelasse uma razão, uma secreta justificativa para a tristeza que estava sentindo.
Deus não lhe deu uma resposta, mas o homem creu ouvir na escuridão:
– Andrew, o que você deve se perguntar é como devem ter se sentido os seus amigos, crescendo com você durante todos esses anos: os amigos que, sabendo que você se mostrava em tudo abertamente contrário ao que eles são e ao que representam, escolheram permanecer seus amigos.
Desta caverna emergiu um homem absolutamente notável. Marin decidiu que sua vida deveria servir de ponte entre dois discursos altamente incompatíveis, o dos conservadores evangélicos norte-americanos e o da exuberante comunidade homossexual de seu país. Ele refez o trajeto, pediu perdão a seus amigos e mudou-se para o bairro gay da sua cidade, Chicago, onde reside com a esposa há mais de dez anos. Ali Marin vive, permanece disponível e promove reuniões não-ortodoxas em lugares absolutamente não-ortodoxos, ao mesmo tempo em que organiza os movimentos de uma pequena mas ambiciosa fundação.
Tendo em vista a eterna discussão a respeito de até que ponto a orientação homossexual é uma escolha ou um destino, Marin achou melhor subverter os raciocínios subjacentes e adotou como lema a frase: "O amor é uma orientação", que é também o título de seu livro. Para Andrew Marin, iluminado pelo que vê no sol dos evangelhos, o amor é que é, sem espaço para discussão e em todos os sentidos, uma inescapável orientação. Neste clima e neste momento da história isso implica que os cristãos devem amar formidavelmente e exuberantemente os homossexuais.
Mas na boca de Marin isto não se limita ao batido discurso de odiar o pecado e amar o pecador. Para começar, quando perguntado, Marin recusa-se a dar respostas simplistas e polarizadoras para as perguntas mais quentes que cercam a questão. Ele explica que aprendeu com Jesus a não dar respostas simples para questões complexas, e essa sua postura (precisamente como no tempo de Jesus) desperta por vezes a indignação de gente dos dois lados do muro.
Para muitos conservadores evangélicos, Marin é uma abominação e seu ministério é uma farsa porque, apesar de se apresentar como conservador, ele se recusa a admitir com todas as letras e enfatizar o que eles enxergam como essencial: que a conduta homossexual é incontornavelmente pecaminosa e que não há conjuntura em que ela possa ser considerada aceitável diante de Deus e dos homens. Semelhantemente, para muitos na comunidade homossexual Marin é uma falso amigo e um propagandista infiltrado, porque apesar desse papo de amor ele se recusa a admitir com todas as letras o que eles enxergam como essencial: que a conduta homossexual entre adultos é coisa legítima, íntegra e sã, que merece a celebração dos homens e as bençãos da igreja tanto quanto qualquer relação heterossexual.
Andrew Marin é esse homem que deixa-se queimar entre os extremos, lutando centímetro por centímetro para promover o diálogo sem contribuir para acentuar uma distância que como está já é paralisante. Marin tornou-se um gigante porque teve de fato um bom professor, e aprendeu com o Jesus dos evangelhos que um discurso polarizador não deve ser jamais alimentado. Todo discurso aplicado ao extremo (e os discursos tendem aos extremos) gera esterilidade, hostilidade e desumanização. A ferida dos ódios resultantes só pode ser estancada pelo remédio do amor, o amor que é uma orientação: ao mesmo tempo uma escolha e um destino.
E é de Marin a definição mais fulgurante de amor que jamais ouvi: "amor", explica ele, "é a expressão mensurável de comportamentos não-condicionados". Permita-me repetir: amar é prover expressões mensuráveis de comportamento não-condicionado. Proponho que façamos todos nós uma tatuagem muito visível e incômoda com essa frase! Só depois de recitá-la solenemente para nós mesmos ganharíamos o direito de atirar a primeira pedra.
De que forma Andrew Marin dá evidência desse amor não-condicionado? Ele vive há uma década entre gente que não compreende e não tem ferramentas para compreender. Ele os defende diante de gente que os considera indefensáveis, e recebe a condenação dos que está defendendo porque acham que ele não está indo longe o bastante. Cada um a seu modo, os dois lados acham insuficiente a proposta de amor de Marin. Mas o maluco, o insensato, continua amando.
Nos Estados Unidos, cristãos que frequentam as passeatas gay costumam fazê-lo para levar cartazes que dizem coisas edificantes do tipo "DEUS ODEIA BICHAS" ou "VÂO ARDER NO INFERNO"Andrew Marin e seus amigos vão a essas passeatas com cartazes que dizem apenas "I'M SORRY", e pedem a quem quiser ouvir desculpas por todo o ódio que já foi derramado sobre os homossexuais no nome Daquele que nada tem a ver com o ódio.
Por trás dessa sua singeleza, dessa impertinência de Marin em amar o inimigo tido como o mais desprezível, demonstra uma subversão ainda maior: a ousadia de sugerir que um cristão não deve ser capaz de extrair sua identidade de algo que não seja o amor. Para esse pequeno americano, não somos cristãos quando confessamos, quando escolhemos o mesmo adversário ou quando concordamos a respeito de alguma doutrina. Somos cristãos enquanto afirmamos teimosamente, sempre em atos mais do que palavras, a supremacia do amor.
É claro que ninguém dá ouvidos ao cara, porque seu ministério é pequeno e sua proposta insensata. Se amar for de fato prover expressões mensuráveis de comportamentos não-condicionados, quem se mostrará pronto a amar? Porque, se for assim, amar não seria você aprovar a conduta de dois caras sentados de mãos dadas no banco da sua igreja, mas seria você respirar fundo e não condená-los por eles estarem ali. Amar não seria você concordar com as posturas de pastores como o Ricardo Gondim a respeito de qualquer assunto, mas seria concluir que o seu compromisso mútuo com o amor basta para vocês continuarem juntos debaixo de um mesmo teto editorial (para entender, clique aqui). Essas seriam expressões genuínas de comportamento não-condicionado. Porque quando não estamos defendendo o amor estamos defendendo meramente a nossa convicção, ou pior, a nossa reputação, e até os pecadores fazem o mesmo.
Qualquer homossexual poderia nos ensinar a amar mais e melhor.
Muito mais sobre Andrew Marin, sua história, seu ministério e sua sacrossanta insensatez, aqui (em inglês): Loveisanorientation - Leia, vale muito a pena!