Mestre do universo que tem reinado antes mesmo que qualquer coisa tenha sido criada, no momento em que tudo foi feito segundo Sua vontade, como Rei foi então o Seu nome proclamado.
E depois que tudo chegar ao fim somente o Temível continuará... a reinar. Ele que era, Ele que é, Ele que sempre será em glória...
Ele é Um e não há outro que possa ser comparado ou posto ao Seu lado.
Sem princípio, sem fim. A Ele a força e o domínio.
Ele é meu Deus, meu Redentor vivo, Rocha de minhas dores, no momento da angústia Ele é meu estandarte e o meu refúgio.
A porção do meu cálice no dia em que O invocar.
Nas Suas mãos eu depositarei o meu espírito No momento do sono então despertarei junto com meu espírito e também meu corpo.
O Eterno está comigo e eu não temerei...
[Canção Hebraica]

- Alexandre Verçosa
- "O que me faz viver é tão intenso que até me perco se explicar. O que me faz viver é tão profundo, mas me vê no mundo, no singular. O que me faz viver vai além da lógica. É maior do que a amplitude cósmica, que o meu pensar. O que me faz viver, eu sei, é isto: de Jesus, o Cristo, o amar." [Sérgio Pimenta]
quarta-feira, 27 de julho de 2011
terça-feira, 26 de julho de 2011
JESUS TE AMA (?)
Para Harold Bloom, a personalidade é uma invenção de Shakespeare; para Jacqes Derrida, o indivíduo é uma ilusão criada pela intersecção do corpo com o discurso das estruturas de poder. Em alguma medida todos que estudam o assunto concordam que foram necessários milênios de evolução cultural para que o conceito de indivíduo saísse pela primeira vez do oceano indiferenciado da cultura da coletividade. Os gregos lhe deram pernas e o Renascimento moveu-se de paixão por ele, mas foi o capitalismo de livre-mercado (o mundo em que vivemos) que colocou finalmente o indivíduo acima de todos os outros deuses.
Esse lento despertar do indivíduo de seu sono no seio coletivo está refletido no próprio fio narrativo da Bíblia. No Pentateuco e, em grande medida, nas crônicas históricas, a coletividade prevalece de forma muito evidente sobre o indivíduo. Os mandamentos e as promessas, as injunções e as ameaças, dizem respeito ao povo como um todo e requerem coletiva obediência1. Mesmo notáveis como Moisés, Abraão e Davi são celebrados menos pelos seus traços de personalidade do que pelo seu papel na sustentação e fixação do caráter da comunidade. Num certo sentido só existe o coletivo: os méritos de Israel são medidos pelo desempenho do grupo, e todos são castigados pelo erro de uns poucos.
Então, em algum momento da história e talvez sob a influência transversal dos gregos, os profetas abandonam a ênfase tradicional na responsabilidade coletiva e começam a enfatizar a responsabilidade individual. A justiça divina passa a ser compreendida de uma nova maneira, e nela os filhos deixam de ser punidos pelas transgressões dos pais. Deus deixa de visitar as gerações e a massa indistinta dos "filhos de Israel" e passa a procurar homem a homem um coração contrito em que possa reclinar a cabeça.
O ensino de Jesus surge num momento em que o conceito de responsabilidade individual já está bastante desenvolvido no tecido cultural de Israel. O Filho do Homem, por um lado, reforça ao extremo essa tendência, denunciando os abusos da religiosidade coletiva-institucional e requerendo de cada um o posicionamento e o engajamento que o distinga da ilusão da massa. Por outro lado, Jesus reverte por completo o alvo e o fim da individualidade, deixando claro que o indivíduo só encontra realização, significado e verdadeira satisfação no serviço voluntário e não-condicionado do próximo. O conceito de metanoia, como apresentado por Jesus e pelo seu precursor, diz respeito a esse duplo despertar do humano para sua individualidade e para seu destino glorioso no seio do Outro. Porque para Jesus só existe o indivíduo, mas a qualidade da relação do indivíduo com Deus e consigo mesmo tem uma única medida, a da qualidade da sua relação com o outro. "Sempre que o fizestes a um destes meus irmãos, a mim o fizestes".
Dos discursos ausentes de Atos e do Novo Testamento, o mais revelador (tanto da mentalidade da comunidade original quanto da nossa) talvez seja o apelo ao indivíduo que caracteriza toda a evangelização contemporânea, e encontra sua manifestação mais comum na fórmula "Jesus te ama".
Os colonizadores bíblicos do reino encontraram muitas maneiras de propor a boa nova, mas parece que nenhuma delas passa por enfatizar o amor individual e incondicional de Jesus (ou de Deus) pelo ouvinte. A Bíblia está muito mais inclinada a dizer que Jesus é Deus, e que Deus é amor, do que a fornecer ao seu leitor o conforto (que oferecemos a qualquer um) de que Jesus o ama. Isso porque articular a boa nova como “Jesus te ama” requer como pré-condição uma sociedade inteiramente obcecada com a ideia do indivíduo: a nossa sociedade.
Há um oceano de diferença entre dizer, como a o Novo Testamento, "Deus é amor", e dizer, como dizemos, "Jesus ama você"; entre dizer como a Bíblia "andem em amor, como Cristo também os amou", e dizer como dizemos "Jesus te ama". A articulação bíblica, de que Deus é amor, requer uma resposta ativa de amor ao outro, e sugere um trajeto que resgate o ouvinte do abismo sem fundo do individualismo. A conclusão necessária de ouvir "Deus é amor" é um incômodo devo amar. Nossa própria articulação, “Jesus te ama”, requer uma resposta meramente passiva e ignora por completo a questão da minha relação com o outro. A conclusão necessária de ouvir "Jesus te ama" é um confortável sou amado. Para a Bíblia, o amor é um desafio que me resgata de mim mesmo; para o evangelismo contemporâneo, é um conforto que me faz afundar ainda mais dentro de mim.
Porque o Novo Testamento, que não cessa de atestar o amor de Deus, não se rebaixa como nós a usar esse amor como fonte de conforto e acomodação. Ao contrário, o amor divino requer a mais urgente e intransigente das respostas, a imitação:
Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a ele.
Amados, se Deus assim nos amou, nós também devemos amar-nos uns aos outros.
Dizer "Jesus te ama" é sugerir que o sentido do movimento do reino é para dentro do indivíduo; a Bíblia, em contrapartida, insiste que o movimento do reino é no sentido oposto, do indivíduo para fora. Essa, do indivíduo para fora, é na verdade a única definição concebível de amor. Aqui está o padre francês François Varillon, lembrando que amar (isto é, ser salvo; isto é, ser como Deus) requer um movimento, uma transferência de centro, de nós mesmos para o outro:
"Descentro-me para que meu próprio centro não mais me pertença; de agora em diante seja você o meu núcleo. [...] Amar é renunciar a viver em si, por si e para si. Eis o mistério da Trindade: se o amor é acolhida, é necessário que haja diversas pessoas em Deus. Ninguém se dá a si mesmo, nem a si mesmo acolhe. A vida de Deus é essa vida de acolhida e dom. O Pai é movimento para o Filho. O Filho é Filho para o Pai e pelo Pai. E o Espírito Santo é o beijo entre eles."
Dizer "Jesus te ama" é dirigir-se circularmente ao indivíduo, e para salvar o indivíduo é preciso resgatá-lo de si mesmo. Na narrativa de Atos a boa nova é que a obra de Jesus libertou seus ouvintes não para descansarem no privilégio inescapável de serem amados – mas para capacitá-los a fazer a coisa certa. E, se pecar é omitir-se, fazer a coisa certa é colocar o amor em prática. É por isso que, para os autores do Novo Testamento, amar (e nisso imitar a divindade) é privilégio e responsabilidade tão grande que diante dele ser amado representa a mais acessória das faculdades.
Nossa tendência é acreditar na pregação que afirma que viver o amor requer a negação do eu e equivale à completa renúncia da individualidade. A verdade é muito mais desafiadora e interessante, porque o amor é a única afirmação possível do eu. Jesus tornou-se grande no que amou; encontrou a mais completa e contagiante humanidade no ato de atribuir valor aos mais desprezíveis dos seus interlocutores. O inferno é o conforto da paralisia do ego, e a inteireza do eu está no trajeto para os outros.
Esse lento despertar do indivíduo de seu sono no seio coletivo está refletido no próprio fio narrativo da Bíblia. No Pentateuco e, em grande medida, nas crônicas históricas, a coletividade prevalece de forma muito evidente sobre o indivíduo. Os mandamentos e as promessas, as injunções e as ameaças, dizem respeito ao povo como um todo e requerem coletiva obediência1. Mesmo notáveis como Moisés, Abraão e Davi são celebrados menos pelos seus traços de personalidade do que pelo seu papel na sustentação e fixação do caráter da comunidade. Num certo sentido só existe o coletivo: os méritos de Israel são medidos pelo desempenho do grupo, e todos são castigados pelo erro de uns poucos.
Então, em algum momento da história e talvez sob a influência transversal dos gregos, os profetas abandonam a ênfase tradicional na responsabilidade coletiva e começam a enfatizar a responsabilidade individual. A justiça divina passa a ser compreendida de uma nova maneira, e nela os filhos deixam de ser punidos pelas transgressões dos pais. Deus deixa de visitar as gerações e a massa indistinta dos "filhos de Israel" e passa a procurar homem a homem um coração contrito em que possa reclinar a cabeça.
O ensino de Jesus surge num momento em que o conceito de responsabilidade individual já está bastante desenvolvido no tecido cultural de Israel. O Filho do Homem, por um lado, reforça ao extremo essa tendência, denunciando os abusos da religiosidade coletiva-institucional e requerendo de cada um o posicionamento e o engajamento que o distinga da ilusão da massa. Por outro lado, Jesus reverte por completo o alvo e o fim da individualidade, deixando claro que o indivíduo só encontra realização, significado e verdadeira satisfação no serviço voluntário e não-condicionado do próximo. O conceito de metanoia, como apresentado por Jesus e pelo seu precursor, diz respeito a esse duplo despertar do humano para sua individualidade e para seu destino glorioso no seio do Outro. Porque para Jesus só existe o indivíduo, mas a qualidade da relação do indivíduo com Deus e consigo mesmo tem uma única medida, a da qualidade da sua relação com o outro. "Sempre que o fizestes a um destes meus irmãos, a mim o fizestes".
Dos discursos ausentes de Atos e do Novo Testamento, o mais revelador (tanto da mentalidade da comunidade original quanto da nossa) talvez seja o apelo ao indivíduo que caracteriza toda a evangelização contemporânea, e encontra sua manifestação mais comum na fórmula "Jesus te ama".
Os colonizadores bíblicos do reino encontraram muitas maneiras de propor a boa nova, mas parece que nenhuma delas passa por enfatizar o amor individual e incondicional de Jesus (ou de Deus) pelo ouvinte. A Bíblia está muito mais inclinada a dizer que Jesus é Deus, e que Deus é amor, do que a fornecer ao seu leitor o conforto (que oferecemos a qualquer um) de que Jesus o ama. Isso porque articular a boa nova como “Jesus te ama” requer como pré-condição uma sociedade inteiramente obcecada com a ideia do indivíduo: a nossa sociedade.
Há um oceano de diferença entre dizer, como a o Novo Testamento, "Deus é amor", e dizer, como dizemos, "Jesus ama você"; entre dizer como a Bíblia "andem em amor, como Cristo também os amou", e dizer como dizemos "Jesus te ama". A articulação bíblica, de que Deus é amor, requer uma resposta ativa de amor ao outro, e sugere um trajeto que resgate o ouvinte do abismo sem fundo do individualismo. A conclusão necessária de ouvir "Deus é amor" é um incômodo devo amar. Nossa própria articulação, “Jesus te ama”, requer uma resposta meramente passiva e ignora por completo a questão da minha relação com o outro. A conclusão necessária de ouvir "Jesus te ama" é um confortável sou amado. Para a Bíblia, o amor é um desafio que me resgata de mim mesmo; para o evangelismo contemporâneo, é um conforto que me faz afundar ainda mais dentro de mim.
Porque o Novo Testamento, que não cessa de atestar o amor de Deus, não se rebaixa como nós a usar esse amor como fonte de conforto e acomodação. Ao contrário, o amor divino requer a mais urgente e intransigente das respostas, a imitação:
Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a ele.
Amados, se Deus assim nos amou, nós também devemos amar-nos uns aos outros.
Dizer "Jesus te ama" é sugerir que o sentido do movimento do reino é para dentro do indivíduo; a Bíblia, em contrapartida, insiste que o movimento do reino é no sentido oposto, do indivíduo para fora. Essa, do indivíduo para fora, é na verdade a única definição concebível de amor. Aqui está o padre francês François Varillon, lembrando que amar (isto é, ser salvo; isto é, ser como Deus) requer um movimento, uma transferência de centro, de nós mesmos para o outro:
"Descentro-me para que meu próprio centro não mais me pertença; de agora em diante seja você o meu núcleo. [...] Amar é renunciar a viver em si, por si e para si. Eis o mistério da Trindade: se o amor é acolhida, é necessário que haja diversas pessoas em Deus. Ninguém se dá a si mesmo, nem a si mesmo acolhe. A vida de Deus é essa vida de acolhida e dom. O Pai é movimento para o Filho. O Filho é Filho para o Pai e pelo Pai. E o Espírito Santo é o beijo entre eles."
Dizer "Jesus te ama" é dirigir-se circularmente ao indivíduo, e para salvar o indivíduo é preciso resgatá-lo de si mesmo. Na narrativa de Atos a boa nova é que a obra de Jesus libertou seus ouvintes não para descansarem no privilégio inescapável de serem amados – mas para capacitá-los a fazer a coisa certa. E, se pecar é omitir-se, fazer a coisa certa é colocar o amor em prática. É por isso que, para os autores do Novo Testamento, amar (e nisso imitar a divindade) é privilégio e responsabilidade tão grande que diante dele ser amado representa a mais acessória das faculdades.
Nossa tendência é acreditar na pregação que afirma que viver o amor requer a negação do eu e equivale à completa renúncia da individualidade. A verdade é muito mais desafiadora e interessante, porque o amor é a única afirmação possível do eu. Jesus tornou-se grande no que amou; encontrou a mais completa e contagiante humanidade no ato de atribuir valor aos mais desprezíveis dos seus interlocutores. O inferno é o conforto da paralisia do ego, e a inteireza do eu está no trajeto para os outros.
terça-feira, 5 de julho de 2011
BABELISMO: As perversas construções humanas e a graciosa desconstrução divina
Por Elienai Cabral Jr.
NÃO DEMORA MUITO para que qualquer um descubra a pior das angústias humanas: nossa vida também é morte. Tudo o que amamos, planejamos e construímos é insustentável. Nossas melhores idéias duram tão pouco que a frustração é inevitável. Sonhamos com mundos novos, adrenalizamos a vida idealizando o futuro. Mas conhecemos com desencanto a fatídica fragilização de nossos ideais no desenrolar dos dias, na inclusão de outras pessoas, nas descobertas de novas necessidades e problemas, no adiamento de algumas soluções, nos empenhos inócuos, na convivência com muitas carências e tantos deslizes indesejados. Pouco a pouco, um projeto que nasce vigoroso e carregado de uma sensação de eternidade, por mais belo e consistente, enfraquece e perde gravidade.
Sei que a nostalgia é um sentimento também de auto-engano, pois tudo o que está longe, como o passado, parece melhor do que realmente é ou foi. Mas a nostalgia também é um índice dessa angústia pela insustentável finitude que nos constitui.
Sentir nostalgia pelo ponto de partida de qualquer empreendimento é evidência de enfraquecimento, de que não tem mais o mesmo poder de persuasão e encanto. Nostalgia é vertigem pela impotência ante o efêmero. Nossos mecanismos de renovação nada mais são que o sintoma de anemia da idéia inicial. No ambiente da igreja, nossos “anseios por avivamento” confirmam nossa fraqueza. Adélia Prado trata o assunto em sua poesia "Chorinho Doce":
Eu já tive e perdi
Uma casa,
Um jardim, uma soleira,
O portal,
O jardim mais a casa,
O caixão de janela e aquele rosto de banda.
Tudo impossível,
Tudo de outro dono,
Tudo de tempo e vento.
Então me dá choro, horas e horas.
O coração amolecido como um figo na calda.
Mas uma outra palavra também descreve o modo como nos debatemos existencialmente com a insustentabilidade de nossas construções: instituição. Institucionalização é o processo humano de perpetuação de valores tendo em vista a irresistível contigencialidade da vida. As pessoas mudam. Tudo o que nos cerca muda. O futuro é futuro porque somos temporais, mas também porque somos imprevisíveis. Se fôssemos imutáveis, seres de estabilidade absoluta, além de não sermos humanos nem livres, seríamos seres sem futuro, arremessados a um "eterno agora" entediante. Descortinando com coragem e angústia, o Pregador (Eclesiastes) admite:
"Considere o que Deus fez: Quem pode endireitar o que ele fez torto? Quando os dias forem bons, aproveite-os bem; mas, quando forem ruins, considere: Deus fez tanto um quanto o outro, para evitar que o homem descubra alguma coisa sobre o seu futuro." (Ec 7.13-14)
"Porquanto há uma hora certa e também uma maneira certa de agir para cada situação. O sofrimento de um homem, no entanto, pesa muito sobre ele, visto que ninguém conhece o futuro. Quem lhe poderá dizer o que vai acontecer? Ninguém tem o poder de dominar o próprio espírito; tampouco tem poder sobre o dia da sua morte e de escapar dos efeitos da guerra; nem mesmo a maldade livra aqueles que a praticam." (Ec 8.6-8)
Instituir é estabelecer valores acima de nossa inconstância. Instituir é programar o futuro antes que o que aprendemos a amar transforme-se em passado. A forma pactual de se prevenir da nossa instabilidade é normatizar o comportamento de todos. Na institucionalização, diminuímos e enfraquecemos a importância da subjetividade de pessoas livres e a influência das circunstâncias para solidificarmos organismos, materiais ou imateriais, representativos de nossos valores. Aprendemos a amar o Reino de Deus, mas inventamos igrejas para perpetuar nosso amor. Ficamos apaixonados pelo que podemos fazer em defesa de crianças pobres, mas criamos institutos para preservar nossa paixão. Amamos uma pessoa, sonhamos em formar uma família, mas instituímos um casamento para fazer durar nosso amor.
A imprevisibilidade do comportamento humano é característica de sua finitude. Nós, as coisas que amamos, os eventos que promovemos, todas as nossas construções são finitas. Nós e tudo o que parte de nós morrem. A partir deste fato, convivemos com a vertigem da irresistível contingência de viver. A instituição é um pacto entre mortais em busca de ultrapassar sepulturas. A instituição é a nossa impotente luta contra a morte.
Precisamos falar de morte. Ela é a presença dura de nossa finitude: “Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque você é pó, e ao pó voltará”. (Gn 3.19) Há um pouco de morte em cada experiência de término ou de limite, em cada derrota, frustração, fadiga, desânimo, doença. No envelhecimento descobrimos um pouco da morte, em cada ruga, em cada nova impossibilidade, em cada memória empalidecida. Mas há as experiências-limite com a morte, aquelas que dela nos avisam com mais força. E aqui há um indicativo precioso, a experiência de rejuvenescimento que se segue a essas experiências-limite. Um acidente automobilístico, uma enfermidade avassaladora, a morte de alguém muito próximo, curiosamente, nos faz melhores. Quem experimenta um pouco da morte melhora, seus valores esquecidos são rememorados, seus afetos embrutecidos são ressensibilizados. Olha com mais cuidado para a vida. Enxerga com mais ternura a outra pessoa. Tolera mais. Apressa-se em superar mesquinharias. A vida é catalisada pela morte. A morte nos aflige, mas nos redime.
A morte carrega um princípio de redenção, portanto. No texto de Gênesis, Deus instaura o fim, estabelece o encerramento da existência humana, com o objetivo, imagino, de impedir que escolhas e ações humanas, se infinitas, tornassem-se prisões, destinos irrevogáveis. “Então disse o SENHOR Deus: ‘Agora o homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal. Não se deve, pois, permitir que ele tome também do fruto da árvore da vida e o coma, e viva para sempre’”. (Gn 3.22) Permitam-me os irmãos fundamentalistas, fazer uma leitura literal de Gênesis, mormente os seus primeiros 11 capítulos, é empobrecer a revelação de Deus, além de ingenuidade tola. O Deus da palavra criativa nunca abriu mão da poesia e do simbólico, talvez a única expressão que o revele com graciosidade. Estamos lendo um mito. Deus usou os mitos de uma civilização para impregnar-nos de valores e princípios sublimes. Dentro desse mito revelador, ou insinuante, da criação, arrisco-me a dizer que Deus introduziu a morte na existência humana para impedir-nos de perpetuar o mal. Somos finitos pela misericórdia de Deus. Morremos por socorro divino.
A instituição carrega uma contradição em seu interior. Através dela olhamos com realismo para nossos limites e instabilidades, protegemo-nos de nossa própria maldade. Cuidamos de nossos ideais com responsabilidade. Ampliamos o alcance de nossas conquistas. Isto, a princípio, é belo e bom. Mas, em oposição a este movimento, a instituição também incorpora uma dinâmica maligna. Na instituição somos tentados a substituir a presença pessoal e afetiva por ritos burocráticos. Ao invés de abraços celebrativos, estatutos. Ao invés de ouvidos, o cumprimento cabal de regras. Ao invés da leveza dos sonhos, o peso das obrigações que se multiplicam sem fim. Ao invés de amarmos o ideal, amamos as posições de poder. Ao invés de lutarmos com paixão por um sonho, lutamos com maquiavelismo pelo reconhecimento da razão. Por medo da morte, substituímos a vida pela instituição. Vinicius de Morais percebeu o nossa (não) relação com a morte na poesia A Morte:
A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida.
Toda institucionalização é também uma mistificação idolátrica. Damos tamanha importância às nossas instituições que elas terminam divinizadas. Substituímos, assim, os sonhos e anseios que nos moveram a criá-las por elas mesmas. Jesus faz esta denúncia quando responde às críticas dos religiosos por movimentar-se no sábado, curando ou permitindo que seus discípulos comessem: "E então lhes disse: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado. Assim, pois, o Filho do homem é Senhor até mesmo do sábado". (Mc 2.27-28)
Se a instituição é o invento organizacional da pessoa humana que, ao reagir à sua finitude, acaba por desumanizar-se, institucionalizando a si mesma e às outras pessoas, a confusão, o desencontro, o desgaste, a crise e conseqüente deconstrução de nossas instituições não poderiam ser o invento redentivo de Deus? O Deus que criou a morte para livrar-nos da perpetuação do mal, também não teria garantido a repercussão da morte, gerando confusão e crise em nossas construções para livrar-nos da institucionalização da vida? Creio que sim.
É aqui que o capítulo 11 de Gênesis colabora com nossa reflexão. Acredito que a narrativa da Construção da Torre de Babel, em sua linguagem mítica, descreve a dinâmica da institucionalização e a reação divina a ela. A unidade fictícia descrita inicialmente é a ocasião para a orquestração de um plano: construir algo tão elevado que garantiria que seus nomes não seriam dispersos sobre a terra. Deus discerne o movimento maligno por trás da construção e promove confusão. Na confusão o projeto é esvaziado, a ficção é descoberta. No desencontro entre subjetividades, intensificado pela ampliação da liberdade e individualidade das pessoas, Deus livrou-os de perpetuarem o mal em sua instituição-construção. A pessoa humana instituiu, Deus babelizou. A pessoa humana organizou para perpetuar-se cruelmente, Deus confundiu para pulverizar graciosamente a perversidade.
Gianni Vattimo propõe a secularização como uma nova kenosis de Deus. A secularização que fez desmoronar a pretensão da religião de ser porta-voz da verdade última realizou no cristianismo o que Deus fez consigo mesmo. O cristianismo sem a secularização e sua marginalização da vida religiosa barbarizou em nome de Deus. A igreja secularizada precisou reaprender o caminho da humildade e da conversa. A igreja pós-secularização foi devolvida inadvertidamente ao caminho do amor.
Deus se esvaziou (kenosis) e se humanizou, serviu-nos como um de nós (Fl 2.5-8). E como um de nós, ensinou-nos também a morrer. Quem se esvaziou para se tornar gente e se humanizou ao limite da morte, concluiu sua trajetória gloriosamente, com um nome que é sobre todo nome: Jesus. A secularização, fenômeno social decorrente do iluminismo, racionalismo, industrialização e cientificismo, que destituiu a igreja-instituição do horizonte último de legitimidade da vida, tornou-se graciosamente a oportunidade de, esvaziada, a igreja reaprender o caminho do amor e da morte redentora.
Assistimos, hoje, a bagatelização de um movimento que já foi caro: o evangelicalismo. Ser evangélico, hoje, é ser confundido com o fundamentalismo religioso que legitimou a barbárie norte-americana no Iraque. Ser evangélico, hoje, é ser associado ao enriquecimento com o uso da religião. Ser evangélico, hoje, é participar do que há de mais sofisticado no mercadejamento da fé. O evangelicalismo brasileiro tem mais a marca de politiqueiros inescrupulosos que de santos e devotos. A cor e o som do movimento evangélico são tão artificiais quanto o que transmitem os comunicadores da televisão, cheios de cacoetes ensaiados e jargões vazios. No meio de tudo isso há um remanescente. Há “sete mil que não dobraram os joelhos”. Mas nem estes nem o passado heróico do evangelicalismo justificam qualquer insistência com um movimento que precisa morrer.
A pulverização dos ideais cristãos no movimento evangélico pode ser uma nova kenosis de Deus. Quem sabe Deus não está babelizando nossa construção evangélica para nos livrar da perpetuação do mal. Quem sabe esta confusão evangélica, em que não mais conseguimos nos identificar, não seja o esvaziamento que nos devolverá ao caminho do amor? Precisamos renovar nosso olhar para o Cristo de Deus, prestar atenção no despojamento divino em fazer-se gente e acolher a morte redentora. Se Deus se esvaziou sendo Deus, como recusar o esvaziamento de nossas instituições, pretensas divindades? Se quem era escolheu deixar de ser, nós que não somos que outra opção mais legítima podemos ter? Adélia Prado conclui com poesia o que eu não consegui com dissertação, "Fé":
Uma vez, da janela,
vi um homem que estava prestes a morrer,
comendo banana amassada.
A linha do seu queixo era já de fronteiras,
mas ele não sabia, ou sabia?
Como posso saber?
Comia, achando gostoso,
me oferecendo corriqueiro, todavia
inopinado perguntou – ou perguntou comum como das outras vezes?
Como será a ressurreição da carne?
É como nós já sabemos, eu lhe disse,
tudo como é aqui, mas sem as ruindades.
Que mistério profundo!, ele falou
e falou mais, graças a Deus,
pousando o prato.
Sei que a nostalgia é um sentimento também de auto-engano, pois tudo o que está longe, como o passado, parece melhor do que realmente é ou foi. Mas a nostalgia também é um índice dessa angústia pela insustentável finitude que nos constitui.
Sentir nostalgia pelo ponto de partida de qualquer empreendimento é evidência de enfraquecimento, de que não tem mais o mesmo poder de persuasão e encanto. Nostalgia é vertigem pela impotência ante o efêmero. Nossos mecanismos de renovação nada mais são que o sintoma de anemia da idéia inicial. No ambiente da igreja, nossos “anseios por avivamento” confirmam nossa fraqueza. Adélia Prado trata o assunto em sua poesia "Chorinho Doce":
Eu já tive e perdi
Uma casa,
Um jardim, uma soleira,
O portal,
O jardim mais a casa,
O caixão de janela e aquele rosto de banda.
Tudo impossível,
Tudo de outro dono,
Tudo de tempo e vento.
Então me dá choro, horas e horas.
O coração amolecido como um figo na calda.
Mas uma outra palavra também descreve o modo como nos debatemos existencialmente com a insustentabilidade de nossas construções: instituição. Institucionalização é o processo humano de perpetuação de valores tendo em vista a irresistível contigencialidade da vida. As pessoas mudam. Tudo o que nos cerca muda. O futuro é futuro porque somos temporais, mas também porque somos imprevisíveis. Se fôssemos imutáveis, seres de estabilidade absoluta, além de não sermos humanos nem livres, seríamos seres sem futuro, arremessados a um "eterno agora" entediante. Descortinando com coragem e angústia, o Pregador (Eclesiastes) admite:
"Considere o que Deus fez: Quem pode endireitar o que ele fez torto? Quando os dias forem bons, aproveite-os bem; mas, quando forem ruins, considere: Deus fez tanto um quanto o outro, para evitar que o homem descubra alguma coisa sobre o seu futuro." (Ec 7.13-14)
"Porquanto há uma hora certa e também uma maneira certa de agir para cada situação. O sofrimento de um homem, no entanto, pesa muito sobre ele, visto que ninguém conhece o futuro. Quem lhe poderá dizer o que vai acontecer? Ninguém tem o poder de dominar o próprio espírito; tampouco tem poder sobre o dia da sua morte e de escapar dos efeitos da guerra; nem mesmo a maldade livra aqueles que a praticam." (Ec 8.6-8)
Instituir é estabelecer valores acima de nossa inconstância. Instituir é programar o futuro antes que o que aprendemos a amar transforme-se em passado. A forma pactual de se prevenir da nossa instabilidade é normatizar o comportamento de todos. Na institucionalização, diminuímos e enfraquecemos a importância da subjetividade de pessoas livres e a influência das circunstâncias para solidificarmos organismos, materiais ou imateriais, representativos de nossos valores. Aprendemos a amar o Reino de Deus, mas inventamos igrejas para perpetuar nosso amor. Ficamos apaixonados pelo que podemos fazer em defesa de crianças pobres, mas criamos institutos para preservar nossa paixão. Amamos uma pessoa, sonhamos em formar uma família, mas instituímos um casamento para fazer durar nosso amor.
A imprevisibilidade do comportamento humano é característica de sua finitude. Nós, as coisas que amamos, os eventos que promovemos, todas as nossas construções são finitas. Nós e tudo o que parte de nós morrem. A partir deste fato, convivemos com a vertigem da irresistível contingência de viver. A instituição é um pacto entre mortais em busca de ultrapassar sepulturas. A instituição é a nossa impotente luta contra a morte.
Precisamos falar de morte. Ela é a presença dura de nossa finitude: “Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque você é pó, e ao pó voltará”. (Gn 3.19) Há um pouco de morte em cada experiência de término ou de limite, em cada derrota, frustração, fadiga, desânimo, doença. No envelhecimento descobrimos um pouco da morte, em cada ruga, em cada nova impossibilidade, em cada memória empalidecida. Mas há as experiências-limite com a morte, aquelas que dela nos avisam com mais força. E aqui há um indicativo precioso, a experiência de rejuvenescimento que se segue a essas experiências-limite. Um acidente automobilístico, uma enfermidade avassaladora, a morte de alguém muito próximo, curiosamente, nos faz melhores. Quem experimenta um pouco da morte melhora, seus valores esquecidos são rememorados, seus afetos embrutecidos são ressensibilizados. Olha com mais cuidado para a vida. Enxerga com mais ternura a outra pessoa. Tolera mais. Apressa-se em superar mesquinharias. A vida é catalisada pela morte. A morte nos aflige, mas nos redime.
A morte carrega um princípio de redenção, portanto. No texto de Gênesis, Deus instaura o fim, estabelece o encerramento da existência humana, com o objetivo, imagino, de impedir que escolhas e ações humanas, se infinitas, tornassem-se prisões, destinos irrevogáveis. “Então disse o SENHOR Deus: ‘Agora o homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal. Não se deve, pois, permitir que ele tome também do fruto da árvore da vida e o coma, e viva para sempre’”. (Gn 3.22) Permitam-me os irmãos fundamentalistas, fazer uma leitura literal de Gênesis, mormente os seus primeiros 11 capítulos, é empobrecer a revelação de Deus, além de ingenuidade tola. O Deus da palavra criativa nunca abriu mão da poesia e do simbólico, talvez a única expressão que o revele com graciosidade. Estamos lendo um mito. Deus usou os mitos de uma civilização para impregnar-nos de valores e princípios sublimes. Dentro desse mito revelador, ou insinuante, da criação, arrisco-me a dizer que Deus introduziu a morte na existência humana para impedir-nos de perpetuar o mal. Somos finitos pela misericórdia de Deus. Morremos por socorro divino.
A instituição carrega uma contradição em seu interior. Através dela olhamos com realismo para nossos limites e instabilidades, protegemo-nos de nossa própria maldade. Cuidamos de nossos ideais com responsabilidade. Ampliamos o alcance de nossas conquistas. Isto, a princípio, é belo e bom. Mas, em oposição a este movimento, a instituição também incorpora uma dinâmica maligna. Na instituição somos tentados a substituir a presença pessoal e afetiva por ritos burocráticos. Ao invés de abraços celebrativos, estatutos. Ao invés de ouvidos, o cumprimento cabal de regras. Ao invés da leveza dos sonhos, o peso das obrigações que se multiplicam sem fim. Ao invés de amarmos o ideal, amamos as posições de poder. Ao invés de lutarmos com paixão por um sonho, lutamos com maquiavelismo pelo reconhecimento da razão. Por medo da morte, substituímos a vida pela instituição. Vinicius de Morais percebeu o nossa (não) relação com a morte na poesia A Morte:
A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida.
Toda institucionalização é também uma mistificação idolátrica. Damos tamanha importância às nossas instituições que elas terminam divinizadas. Substituímos, assim, os sonhos e anseios que nos moveram a criá-las por elas mesmas. Jesus faz esta denúncia quando responde às críticas dos religiosos por movimentar-se no sábado, curando ou permitindo que seus discípulos comessem: "E então lhes disse: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado. Assim, pois, o Filho do homem é Senhor até mesmo do sábado". (Mc 2.27-28)
Se a instituição é o invento organizacional da pessoa humana que, ao reagir à sua finitude, acaba por desumanizar-se, institucionalizando a si mesma e às outras pessoas, a confusão, o desencontro, o desgaste, a crise e conseqüente deconstrução de nossas instituições não poderiam ser o invento redentivo de Deus? O Deus que criou a morte para livrar-nos da perpetuação do mal, também não teria garantido a repercussão da morte, gerando confusão e crise em nossas construções para livrar-nos da institucionalização da vida? Creio que sim.
É aqui que o capítulo 11 de Gênesis colabora com nossa reflexão. Acredito que a narrativa da Construção da Torre de Babel, em sua linguagem mítica, descreve a dinâmica da institucionalização e a reação divina a ela. A unidade fictícia descrita inicialmente é a ocasião para a orquestração de um plano: construir algo tão elevado que garantiria que seus nomes não seriam dispersos sobre a terra. Deus discerne o movimento maligno por trás da construção e promove confusão. Na confusão o projeto é esvaziado, a ficção é descoberta. No desencontro entre subjetividades, intensificado pela ampliação da liberdade e individualidade das pessoas, Deus livrou-os de perpetuarem o mal em sua instituição-construção. A pessoa humana instituiu, Deus babelizou. A pessoa humana organizou para perpetuar-se cruelmente, Deus confundiu para pulverizar graciosamente a perversidade.
Gianni Vattimo propõe a secularização como uma nova kenosis de Deus. A secularização que fez desmoronar a pretensão da religião de ser porta-voz da verdade última realizou no cristianismo o que Deus fez consigo mesmo. O cristianismo sem a secularização e sua marginalização da vida religiosa barbarizou em nome de Deus. A igreja secularizada precisou reaprender o caminho da humildade e da conversa. A igreja pós-secularização foi devolvida inadvertidamente ao caminho do amor.
Deus se esvaziou (kenosis) e se humanizou, serviu-nos como um de nós (Fl 2.5-8). E como um de nós, ensinou-nos também a morrer. Quem se esvaziou para se tornar gente e se humanizou ao limite da morte, concluiu sua trajetória gloriosamente, com um nome que é sobre todo nome: Jesus. A secularização, fenômeno social decorrente do iluminismo, racionalismo, industrialização e cientificismo, que destituiu a igreja-instituição do horizonte último de legitimidade da vida, tornou-se graciosamente a oportunidade de, esvaziada, a igreja reaprender o caminho do amor e da morte redentora.
Assistimos, hoje, a bagatelização de um movimento que já foi caro: o evangelicalismo. Ser evangélico, hoje, é ser confundido com o fundamentalismo religioso que legitimou a barbárie norte-americana no Iraque. Ser evangélico, hoje, é ser associado ao enriquecimento com o uso da religião. Ser evangélico, hoje, é participar do que há de mais sofisticado no mercadejamento da fé. O evangelicalismo brasileiro tem mais a marca de politiqueiros inescrupulosos que de santos e devotos. A cor e o som do movimento evangélico são tão artificiais quanto o que transmitem os comunicadores da televisão, cheios de cacoetes ensaiados e jargões vazios. No meio de tudo isso há um remanescente. Há “sete mil que não dobraram os joelhos”. Mas nem estes nem o passado heróico do evangelicalismo justificam qualquer insistência com um movimento que precisa morrer.
A pulverização dos ideais cristãos no movimento evangélico pode ser uma nova kenosis de Deus. Quem sabe Deus não está babelizando nossa construção evangélica para nos livrar da perpetuação do mal. Quem sabe esta confusão evangélica, em que não mais conseguimos nos identificar, não seja o esvaziamento que nos devolverá ao caminho do amor? Precisamos renovar nosso olhar para o Cristo de Deus, prestar atenção no despojamento divino em fazer-se gente e acolher a morte redentora. Se Deus se esvaziou sendo Deus, como recusar o esvaziamento de nossas instituições, pretensas divindades? Se quem era escolheu deixar de ser, nós que não somos que outra opção mais legítima podemos ter? Adélia Prado conclui com poesia o que eu não consegui com dissertação, "Fé":
Uma vez, da janela,
vi um homem que estava prestes a morrer,
comendo banana amassada.
A linha do seu queixo era já de fronteiras,
mas ele não sabia, ou sabia?
Como posso saber?
Comia, achando gostoso,
me oferecendo corriqueiro, todavia
inopinado perguntou – ou perguntou comum como das outras vezes?
Como será a ressurreição da carne?
É como nós já sabemos, eu lhe disse,
tudo como é aqui, mas sem as ruindades.
Que mistério profundo!, ele falou
e falou mais, graças a Deus,
pousando o prato.
segunda-feira, 4 de julho de 2011
CONFISSÕES

Ultimamente tenho pensado sobre a necessidade de esclarecer aos que me conhecem e especulam que eu seja associado a alguma igreja, que já não vou a nenhuma igreja há algum tempo. Sei que isso pode decepcionar muita gente e provocar até algumas mudanças nos meus relacionamentos.
Quanto mais penso na questão, no entanto, mais chego à conclusão que o que tenho de confessar é ao resto do mundo, não aos amigos que foram criados na igreja, que estão lá todos os domingos. Devo explicações à gente comum que vê o domingo, incrivelmente, como dia de descanso: dia de ir à praia, de andar de bicicleta no parque, de abraçar os amigos ao redor de um churrasco, de correr atrás de uma bola ou de encontrar a paz diante de uma lata de cerveja e uma boa partida de futebol pela TV.
Preciso confessar que durante muito tempo fui consumidor de igreja. Durante muito tempo fui dependente de igreja e “trafiquei” na sua produção.
Devo confessar o mais grave, que durante esses anos abracei a crença (em nenhum momento limitada pela Escritura ou pelo bom senso) que identificava a qualidade da minha fé com minha participação nas atividades, ao mesmo tempo inofensivas, bem-intencionadas e auto-centradas de determinada agremiação. Em retrospecto continuo crendo em mais ou menos tudo que cria naquela época, porém essa crença confortante e peculiar (espiritualidade = participação na igreja institucional) fui obrigado contra a vontade, contra minha inclinação e contra a força do hábito, a abandonar.
Preciso deixar claro que hoje já não guardo mais daqueles anos qualquer rancor da igreja. De fato não trago deles nenhuma recordação que não esteja cheia de nostalgia e carinho. Ao contrário de alguns, depois de um longo tempo de reflexão, cheguei à conclusão de que não sinto de forma alguma ter sido abusado pela igreja institucional, sinto, ao invés disso, como se tivesse sido eu a abusar dela. Minha impressão clara não é ter sido prejudicado pela igreja, mas de tê-la usado de forma contínua e consistente para satisfazer meus próprios apetites. Apetites por segurança, atenção, glória, entretenimento, aceitação.
Se hoje encaro aqueles dias como uma forma de dependência é porque acabei aceitando o fato de que a igreja como é experimentada: o conjunto de coisas, lugares, atividades e expectativas para as quais reservamos o nome genérico de igreja, representam um sistema de consumo como qualquer outro. As pessoas consomem igreja não apenas da forma que um dependente consome cocaína, mas da forma que adolescentes consomem tecnologia e celebridades consomem atenção. Isto é, com inocência, com avidez, mas muitas vezes para o seu próprio prejuízo.
Todo sistema de consumo confere alguma legitimação, isto é fornece ao consumidor pequenas seguranças e pequenas premiações que fazem com que ele se sinta bem, sinta-se uma pessoa melhor (ou em condições privilegiadas) por estar desfrutando de um produto ou serviço de que (e isto é importante na lógica interna da coisa) não são todos que desfrutam.
As igrejas institucionais, ou qualquer grupo que fuja desse rótulo, mas que na verdade é sim uma instituição nos mesmos moldes que qualquer outra, por mais bem-intencionadas que sejam (e, creia-me, há muito mais gente bem-intencionada envolvida na criação e na sustentação delas do que seria de se supor) funcionam precisamente dessa maneira. Não é a toa que tanto a palavra quanto o conceito de “propaganda” nasceram, historicamente falando, nos salões eclesiásticos. Se hoje há shopping centers e roupas de marca é porque a igreja inventou o conceito de propaganda e de consumo de massa. Foi a igreja a primeira a vender a idéia de que vestir determinada camisa e ser visto em determinada companhia demonstram eficazmente o seu valor como pessoa. Foi a primeira a promover a noção simples (mas cujo tremendo poder as corporações acabaram descobrindo) de que o que você consome mostra que tipo de pessoa você é.
As pessoas que consomem igreja não têm em geral qualquer consciência de que estão se dobrando a um sistema de consumo, mas as evidências estão ali para quem quiser ver. A igreja não é um lugar a que se vai ou um grupo de pessoas que se abraça, mas uma marca que se veste, um produto que se consome continuamente. Tudo de bom que costumamos dizer sobre a igreja reflete, secretamente, essa nossa obsessão com o consumo, observe: “o louvor foi uma benção”, “o sermão foi profundo”, “o coro cantou com perfeição”, “a palavra atingiu os corações”, “Deus falou comigo”. Em outra palavras, tudo que temos a dizer sobre a experiência da igreja são slogans. Na qualidade de consumidores, o que fazemos é retroalimentar nossa dependência, promovendo continuamente nosso produto na esperança de angariar mais consumidores e portanto mais legitimação.
O curioso, o verdadeiramente paradoxal nisso tudo, é que nada nesse sistema circular de consumo (ou em qualquer outro) tem qualquer relação com espiritualidade, com fé ou com a herança de Jesus. Ao contrário, sabemos ao certo que Jesus e os apóstolos bateram-se até a morte no esforço de demolir a tendência muito humana de encarcerar (isto é, satisfazer) os anseios emocionais e espirituais das pessoas em sistemas de consumo e legitimação (isto é, sistemas de controle).
O escritor russo Leon Tolstoi acreditava que, diante da suprema singeleza do ensino de Jesus, levantar (e em seu nome!) uma máquina implacável e arbitrária como a igreja equivalia a restaurar o inferno depois que Jesus tornou o inferno obsoleto. De minha parte, vejo a igreja institucional como um refúgio construído por mãos humanas para nos proteger das terríveis liberdades e responsabilidades dadas por Deus a cada mortal e que Jesus desempenhou de modo tão espetacular. Por outro lado, talvez esse refúgio seja ele mesmo o inferno.
No fim das contas você não encontrará na igreja nada que não seja inteiramente atraente e desejável, e aqui está grande parte do problema. Vá a um templo evangélico no domingo a noite e o que vai encontrar é gente amável, respeitável, ordeira, de banho tomado, sorridente, perfumada e usando suas melhores roupas, e é preciso reconhecer que há um público para esse tipo irresistível de companhia. O bom-mocismo reinante é tamanho, na verdade, que não resta praticamente coisa alguma do escândalo inicial do evangelho. Enquanto descansamos nesse abraço comum, a verdadeira igreja, onde estiver (e talvez exista apenas no futuro), estará por certo mais próxima do dono do bar, do vendedor de jogo do bicho, do travesti exausto da esquina, do divorciado, dos velhinhos que babam desamparados em asilos e das crianças que alguém deixou para trás. Certamente não usará gravata e não terá orçamento anual nem endereço fixo.
Portanto nada tenho contra aquilo que a igreja diz, que é em muitos sentidos bom e justo, mas não tenho como continuar endossando aquilo que a igreja dá a entender: sua mensagem subliminar, por assim dizer, mas que fala muitas vezes mais alto do que qualquer outra voz. Com o discurso eclesiástico oficial eu poderia conviver por muito mais tempo (como de fato já fiz), mas seu meio é na verdade sua mensagem, e frequentar uma igreja é dar a entender:
1. Que aquela facção da igreja é de algum modo mais notável, e portanto mais legítima, do que todas as outras;
2. Que o modo genuíno de se exercer o cristianismo é estar presente nas reuniões regulares e demais atividades de determinada agremiação, ou seja, que a devoção é uma espécie de prêmio de assiduidade;
3. Que o conteúdo da crença é mais importante do que o desafio da fé;
4. Que o caminho do afastamento do mundo, segundo o exemplo de João Batista, é mais digno de imitação do que o caminho do envolvimento com o mundo, segundo a vida de Jesus;
5. Que o modo de vida baseado na busca circular pela legitimação é mais respeitável do que o das pessoas que conseguem viver sem recorrer a esses refrigérios;
6. Que o modo adequado de honrar a herança de Jesus é celebrar ao redor do seu nome, ignorando em grande parte o que ele fez e diz.
Está confirmada, portanto, a ambivalência da minha posição em relação à igreja institucional. Por um lado, sinto falta dos seus benefícios e confortos, por esse mesmo lado, respeito a inegável riqueza de sua herança cultural, que não gostaria de ver de modo algum apagada. Por outro lado, ressinto-me de que o nome singular de Jesus permaneça associado a um monstro burocrático no que tem de mais inofensivo e opressor no que tem de mais perverso, quando sua vida foi a de um matador de dragões dessa mesma natureza. Dito de outra forma, não tenho como condenar a permanência de alguma manifestação da igreja, mas não tenho como justificá-lo se você faz parte de uma.
Em 1996 Walter Isaacson perguntou durante uma entrevista a Bill Gates a sua posição sobre espiritualidade e religião. Sua resposta entrará para os anais da infâmia (e não a dele): “Só em termos de alocação de recursos, a religião já não é coisa muito eficiente. Há muita coisa que eu poderia estar fazendo domingo de manhã”. Em resumo, o que dois mil anos de cristianismo institucional ensinaram ao homem mais antenado da terra é que religião é o que os cristãos fazem no domingo de manhã.
Só não ouse criticar o cara por sua visão rasa de espiritualidade. Fomos nós que demos essa impressão a ele, e só a nós cabe encontrar maneiras de provar que ele está errado.
Invente uma.
sábado, 2 de julho de 2011
Gladir Cabral - "Alhambra"
"Queria tocar os sinos
Da majestosa catedral
Pensei em compor os hinos
Pintar as faces do vitral
Mas tu me fizeste olhar o chão
E repintar os rodapés
Silenciar em meio à sombra do jardim
E foi assim que eu aprendi
A aguardar o tempo bom
A viração do vento sul
O recomeço da estação
Para plantar, para regar, para podar
Para sonhar o renascer da floração
Perto da terra, umedecer
Em meio à horta, serenar
Tua vontade obedecer
.
Um dia a tristeza disse
Que eu nunca mais seria alguém
Melhor que eu me demitisse
Pulasse deste velho trem
Mas tu me fizeste olhar o céu
E eu comecei a ver melhor
Ver teu amor a envolver a minha dor
E me fazer voar além
Da torre desta catedral
Ares de Allambra, luz e bem,
Logo depois de Portugal
Beira de rio, onda do mar, vento mais frio
Luz do luar, perto da Estrela D’alva
Pra ver a Terra amanhecer
E com o sereno repousar
Onde tua mão me colocar"
(Gerson Borges & Gladir Cabral)
Da majestosa catedral
Pensei em compor os hinos
Pintar as faces do vitral
Mas tu me fizeste olhar o chão
E repintar os rodapés
Silenciar em meio à sombra do jardim
E foi assim que eu aprendi
A aguardar o tempo bom
A viração do vento sul
O recomeço da estação
Para plantar, para regar, para podar
Para sonhar o renascer da floração
Perto da terra, umedecer
Em meio à horta, serenar
Tua vontade obedecer
.
Um dia a tristeza disse
Que eu nunca mais seria alguém
Melhor que eu me demitisse
Pulasse deste velho trem
Mas tu me fizeste olhar o céu
E eu comecei a ver melhor
Ver teu amor a envolver a minha dor
E me fazer voar além
Da torre desta catedral
Ares de Allambra, luz e bem,
Logo depois de Portugal
Beira de rio, onda do mar, vento mais frio
Luz do luar, perto da Estrela D’alva
Pra ver a Terra amanhecer
E com o sereno repousar
Onde tua mão me colocar"
(Gerson Borges & Gladir Cabral)
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