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"O que me faz viver é tão intenso que até me perco se explicar. O que me faz viver é tão profundo, mas me vê no mundo, no singular. O que me faz viver vai além da lógica. É maior do que a amplitude cósmica, que o meu pensar. O que me faz viver, eu sei, é isto: de Jesus, o Cristo, o amar." [Sérgio Pimenta]

terça-feira, 31 de maio de 2011

TODOS NUM MESMO BARCO


Há dois mil anos, debaixo deste mesmo sol, um sujeito desaforado sustentava a escandalosa noção de que Deus não aceita as pessoas com base em sua herança genética, desempenho moral, pureza sexual, popularidade, capacidade comprovada de empreendimento, consistência na observância religiosa, quociente de inteligência, saldo médio, nível de crédito ou qualquer outro mérito ou demérito curricular usual, mas com base em seu próprio cavalheirismo e graciosidade aquilo que a Bíblia chama de graça.

Uma característica fundamental do Deus que é Pai, propunha Jesus, é que ele não faz barganhas. Todas as tentativas pessoais e corporativas de ganhar o seu favor e a sua preferência não são apenas inúteis, mas contraproducentes, pois geram em nós uma falsa impressão de mérito pessoal (que só irá nos prejudicar) e não ajudam em nada a limpar a nossa barra.

O Deus da boa nova requer ao mesmo tempo muito mais e muito menos. Para agradá-lo é preciso abrir mão de qualquer tentativa de agradá-lo e começar a imitá-lo. Para imitá-lo é necessário abrir mão de nossa tendência a enxergar diferenças de mérito entre bons e maus, e passar a conceder a todos o mesmo improvável tratamento e as mesmas chances. É preciso aprender a dispensar nosso sol e nossa chuva sobre justos e injustos, sobre os que nos agradam e sobre os que nos odeiam, sendo nisso singulares como Deus é singular (santos como Deus é santo).

Para as pessoas que haviam feito de agradar a Deus sua vida, sua tese e sua profissão, a mensagem de Jesus era impensável escândalo. Os religiosos do tempo de Jesus acreditavam, como os de hoje, que o homem não deveria ser livre para não correr nenhum risco de desagradar a Deus. Os riscos de tal liberdade eram incomensuráveis. O único modo de manter o homem seguro no atalho da moral e da salvação, sabiam eles, era debaixo das rédeas seguras da religião.

Jesus por outro lado, não tinha uma palavra de condenação para oferecer aos corruptos, aos promíscuos, aos terroristas, aos militares da ocupação romana, às prostitutas, aos samaritanos, aos vendidos colaboracionistas, aos criminosos de colarinho branco, aos injustos, aos imorais, aos glutões, aos bêbados, aos mendigos, aos preguiçosos, aos violentos, aos pegajosos, aos irritantes e aos irritados e a todos os seus asseclas de todas as estirpes. Jesus não os condenava, não porque simpatizasse particularmente com a sua conduta, mas porque se condenasse a um teria de condenar a todos. Se todos recebessem o que mereciam, ninguém escaparia ao açoite. Não há um justo sequer, não há ninguém com uma ficha limpa. Nem mesmo um.

Como não há ninguém que possa levantar a mão dizendo que fez corretamente a lição, todos carecem e recebem o mesmo tratamento paciente do mesmo paciente Pai. E não adianta chamar de lado oferecendo maçãs, propinas, untuosos elogios ou longas orações. Estar na condição humana é estar embarcado num mesmo orgulhoso e precário Titanic, e para encontrar a paz é preciso primeiro reconhecer isso. É requisito encarar a dura e libertadora realidade de que você não é melhor do que ninguém e que carece da mesma misericórdia que todos os outros.

Para os pecadores sem máscaras é, curiosamente, mais fácil.

Significativamente, as palavras de condenação de Jesus estavam reservadas para os que apregoavam que as boas intenções da religião institucional eram a solução para o problema de garantir-se um lugar no bote salva-vidas do Titanic da condição humana e tentavam impor austeramente essa solução sobre os outros.

Nenhuma noção parecia a Jesus mais odiável do que essa. Para Jesus, acreditar e agir como se a barganha da religiosidade pudesse de alguma forma garantir alguma cumplicidade com Deus não era apenas a maior impenitência de todas. Era a única.

["Aprendam o que quer dizer: 'Misericórdia quero, e não sacrifício'"], bradava ele...

E falava sério.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

CRISTÃO OU LEVITICENSE?

De vez em quando as pessoas me perguntam o quê, exatamente, tenho contra o cristianismo, já que pareço criticá-lo com certa frequência. Eu não tenho nada contra o cristianismo. Eu queria que mais gente o praticasse. Outro dia vi um adesivo de pára-choque que dizia o seguinte: "os cristãos não são perfeitos, só são perdoados", mas eu às vezes fico pensando com que frequência eles verificam com Cristo o acerto da segunda parte. Fico olhando para protestos e discursos longos protestando contra o casamento de homossexuais, levantando bandeiras, organizando marchas, passeatas com a desculpa hipócrita de que estão defendendo a família, e tento encontrar algo dos ensinos de Cristo naquilo. Como você pode imaginar, encontro muito pouco.

Me pergunto porque tantos fundamentalistas gastam tanto tempo no livro de Levítico e tão pouco tempo no Novo Testamento, e creio que essa é uma pergunta especialmente pertinente. Na verdade, é tão pertinente que eu gostaria de sugerir que existe uma classe inteira de gente que se auto-identifica como "cristãos", mas que não são cristãos de forma alguma, no sentido de que não seguem de fato os ensinos de Cristo de qualquer forma significativa. O que essas pessoas fazem é acenar na direção de Cristo de modo superficial enquanto concentram o seu tempo nos livros do Antigo Testamento. usando o texto seletivamente para apoiar seus próprios ódios e preconceitos, utilizando a Bíblia como cacetete ao invés de porta. Sendo esse o caso, sugiro que paremos de chamar essa gente de cristãos, e comecemos a nomeá-los por algo apropriado à sua fé, inclinações e entusiasmos.

Proponho que os chamemos de "leviticenses", nome inspirado por Levítico, o terceiro livro do Antigo Testamento, famoso por suas regras e fonte das passagens mais frequentemente citadas pelos "leviticenses" para justificar sua intolerância (inclusive, recentemente, contra gays e lésbicas, com base em Levítico 18:22: "Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; é abominação").

Sugerir que um cristão é na verdade um leviticense não é dizer que sua fé é falsa, ao contrário, é sugerir que sua fé encontra-se em outro lugar da Bíblia, nas partes que são fáceis de entender: as regras e regulamentos, todas as noções explícitas sobre o que você pode e não pode fazer para estar bem diante de Deus. Regras são bem mais fáceis de seguir do que a trilha verdadeira de Cristo, que requer humildade e sacrifício e a capacidade de perdoar, amar e importar-se até mesmo por aqueles a que você se opõe e que se opõem e odeiam você. Qualquer idiota pode seguir regras, de fato, há bons indícios de que idiotas só conseguem seguir regras. Eis porque os leviticenses amam Levítico (e outros livros do Pentateuco e do Antigo Testamento): ele é repleto de regras. E em regras você pode confiar. É o motivo de serem regras.

Sejamos claros: nem todo cristão é um leviticense, não quero sugerir isso de jeito nenhum. Nem todo fundamentalista cristão é leviticense. E nem toda pessoa que crê que é moralmente errado permitir o casamento de homossexuais é tampouco leviticense. (Também para ficar claro: embora o Levítico seja parte da Torá, não vejo muitos leviticenses entre os judeus, que pela minha experiência vêem a Torá como um trampolim para abraçar o mundo ao invés de como uma defesa contra ele). Gente de bem pode discordar, e veementemente, sobre o que é certo e o que é errado, sobre o que é moral e o que é imoral, e sobre o que deveria ser feito a respeito. O que faz um leviticense, na minha opinião pelo menos, é a sua capacidade de transmutar as suas crenças em ódio e intolerância, a fim de privar outros de direitos de que deveriam desfrutar. Os leviticenses sempre estiveram entre nós. Eles citavam a Bíblia para justificar a escravidão. Eles citavam a Bíblia para tentar manter as mulheres em casa. Eles citavam a Bíblia para manter as raças puras. Eles citam a Bíblia para impedir que gays e lésbicas beneficiem-se do casamento. E, cada uma das vezes, depois de citarem a Bíblia à saciedade, eles saem e usam essa desculpa para o seu ódio a fim de fazerem coisas terríveis.

Na minha opinião a melhor coisa que os cristãos podem fazer é reconhecer esse grupo no seu meio: gente que lê o mesmo livro, alega seguir os mesmos ensinos e afirma adorar o mesmo Cristo, mas que através de seus atos demonstra ser, vez após outra, algo que não um cristão. Creio que os cristãos deveriam perguntar a essas pessoas: "Quem são vocês? Vocês seguem o exemplo amoroso de Cristo ou seguem as regras de Levítico? Vocês usam a Bíblia para iluminar o seu amor ou para justificar o seu ódio? Quando Cristo voltar, de que modo você irá mostrar que trilhou o seu caminho? Pelo número de pessoas que amou, ou pelo número de pessoas a quem 'justificadamente' se opôs? Você ama a Cristo ou ama regras? Você é cristão ou leviticense?"

Quanto ao restante de nós, proponho que nos esforcemos para separar os cristãos dos leviticenses em nossas mentes. Não vejo motivo para culpar aqueles que genuinamente seguem a Cristo pelas ações dos que meramente usam Cristo como escudo para seus próprios ódios e temores. E, quando um leviticense atravessar o seu caminho, educadamente aponte para ele o que ele realmente é: não um cristão, mas mero leviticense.

Com toda a probabilidade, o leviticense irá odiá-lo por isso. Mas isso apenas comprova a coisa toda.

terça-feira, 24 de maio de 2011

SÓ DE SACANAGEM



De Elisa Lucinda


Meu coração está aos pulos!

Quantas vezes minha esperança será posta à prova?

Por quantas provas terá ela que passar?

Tudo isso que está aí no ar, malas, cuecas que voam
entupidas de dinheiro, do meu dinheiro, que reservo
duramente para educar os meninos mais pobres que eu,
para cuidar gratuitamente da saúde deles e dos seus
pais, esse dinheiro viaja na bagagem da impunidade e
eu não posso mais.

Quantas vezes, meu amigo, meu rapaz, minha confiança
vai ser posta à prova? Quantas vezes minha esperança
vai esperar no cais?

É certo que tempos difíceis existem para aperfeiçoar o
aprendiz, mas não é certo que a mentira dos maus
brasileiros venha quebrar no nosso nariz.

Meu coração está no escuro, a luz é simples, regada ao
conselho simples de meu pai, minha mãe, minha avó e
dos justos que os precederam: "Não roubarás", "Devolva
o lápis do coleguinha",
" Esse apontador não é seu, meu filhinho".

Ao invés disso, tanta coisa nojenta e torpe tenho tido
que escutar.

Até habeas corpus preventivo, coisa da qual nunca
tinha visto falar e sobre a qual minha pobre lógica
ainda insiste: esse é o tipo de benefício que só ao
culpado interessará.

Pois bem, se mexeram comigo, com a velha e fiel fé do
meu povo sofrido, então agora eu vou sacanear:
mais honesta ainda vou ficar.
Só de sacanagem!

Dirão: "Deixa de ser bobo, desde Cabral que aqui todo
o mundo rouba" e eu vou dizer: Não importa, será esse
o meu carnaval, vou confiar mais e outra vez. Eu, meu
irmão, meu filho e meus amigos, vamos pagar limpo a
quem a gente deve e receber limpo do nosso freguês.

Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o
escambau.

Dirão: "É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde
o primeiro homem que veio de Portugal".

Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal.

Eu repito, ouviram? IMORTAL!

Sei que não dá para mudar o começo mas, se a gente
quiser, vai dá para mudar o final

segunda-feira, 23 de maio de 2011

GARIMPO DOS SONHOS

VEM ME SOCORRER

Fiz esse vídeo, que na verdade nada mais é que uma sequência de slides com imagens que eu julguei lembrar a letra dessa música. Veja:





Acho que imagens e música juntos não deixam espaço para argumento. Por vezes isso é utilizado de forma perversa e manipulatória, mas no caso em questão, "não tenho um tom, não tenho palavras, não tenho um acorde que me socorra agora" e "essa não é mais uma canção de amor". Então... quem tem ouvidos para ouvir e olhos para ver, ouça e veja...

sábado, 21 de maio de 2011

A AURORA DO CRISTIANISMO SECULAR

"Mais um mês se passou. O tempo passa tão rápido para você quanto passa para mim aqui? Fico muitas vezes surpreso diante disso – e quando vai chegar o mês em que você e Renate, eu e Maria, e nós dois possamos nos encontrar novamente?

Tenho a impressão nítida de que eventos momentosos estão movendo o mundo a cada dia e poderiam mudar todos os nossos relacionamentos pessoais; gostaria por isso de escrever-lhe com frequência muito maior, em parte porque não sei por quanto tempo poderei fazê-lo, e ainda mais porque queremos dividir tudo um com o outro com a maior frequência e pelo maior tempo possíveis.


Chegou ao fim o tempo em que se podia dizer tudo às pessoas por meio de palavras teológicas ou piedosas.

Estou inteiramente convencido de que quando você chegar a receber esta carta grandes decisões já estarão colocando as coisas em movimento em todas as frentes. Durante as próximas semanas precisaremos de grande força interior, e é isso que desejo para você. Devemos todos manter as mentes lúcidas, de modo a que nada nos assuste.

Em vista do que está por vir estou quase pronto a citar o δει bíblico, e sinto que “anseio olhar”, como os anjos em 1 Pedro 1:121, a fim de ver de que modo Deus irá resolver o aparentemente insolúvel. Creio que Deus está prestes a realizar alguma coisa que, quer façamos parte dela de forma aparente ou oculta, seremos capazes apenas de receber, com a maior maravilha e assombro. De algum modo ficará claro – para os que tiverem olhos para ver – que o Salmo 58:11b2 e o Salmo 9:19-203 são verdadeiros; e teremos de repetir Jeremias 45:54 para nós mesmos todos os dias.

É mais difícil para você passar por isso separado de Renate e do seu menino do que é pra mim, pelo que penso em você especificamente, como estou fazendo agora. Parece-me que seria muito mais fácil, e para nós dois, se pudéssemos passar por isso juntos, ajudando um ao outro. Mas é provavelmente “melhor” que não seja assim, e que cada um de nós o enfrente sozinho. Acho difícil não poder ajudá-lo em coisa alguma – exceto pensando em você de manhã e à noite quando leio a Bíblia, e com frequência durante o dia também.

Você não precisa se preocupar comigo de forma alguma, porque estou levando incomumente bem – você ficaria surpreso se viesse me ver. As pessoas aqui vivem me dizendo (e como você vê, sinto-me muito lisonjeado com isso) que “irradio tanta paz ao meu redor” e que “sou sempre tão alegre” – de modo que os sentimentos muito distintos desses que às vezes me assombram devem, estou achando, basear-se numa ilusão (não que eu de alguma forma acredite nisso!).


Se a religião era uma forma transitória e historicamente condicionada de auto-expressão humana, o que isso quer dizer para o cristianismo?


Você ficaria surpreso, e talvez até preocupado, se soubesse que rumo estão tomando minhas reflexões teológicas; e é aqui que sinto mais falta de você, porque não conheço ninguém mais com quem poderia discutir essas coisas a fim de ter meu pensamento aclarado.

O que me tem incomodado incessantemente é a questão de o que de fato o cristianismo é, ou ainda quem de fato Cristo é, para nós hoje. Chegou ao fim o tempo em que se podia dizer tudo às pessoas por meio de palavras teológicas ou piedosas, e terminou também o tempo da introspecção e da consciência – e portanto o tempo da religião em geral. Estamos progredindo rumo a uma era completamente isenta de religião; da forma como são agora, as pessoas são simplesmente incapazes de serem religiosas. Mesmo os que se descrevem como religiosos não agem de forma alguma em conformidade com isso, e devem portanto estar se referindo a algo muito diferente com esse “religioso”.

Os mil e novecentos anos de pregação e teologia cristãs estão inteiramente embasados no conceito de uma religiosidade inerente à raça humana. O “cristianismo” foi sempre uma manifestação – talvez a verdadeira manifestação – de “religião”. Mas se um dia fica claro que esse “inerente” não existe de forma alguma, mas tratava-se de um forma transitória e historicamente condicionada de auto-expressão humana, e se o homem torna-se em consequência disso radicalmente irreligioso – e creio que seja mais ou menos esse o caso (do contrário como explicar, por exemplo, que esta guerra, em contraste com todas as anteriores, não está produzinho qualquer reação “religiosa”?) – o que isso quer dizer para o “cristianismo”?

Quer dizer que foi removida a fundação de tudo que havia sido até agora nosso “cristianismo”, e que restam uns poucos “últimos sobreviventes da era dos cavaleiros”, ou uns poucos sujeitos intelectualmente desonestos, dos quais podemos descender como “religiosos”. Serão esses os poucos escolhidos? Será contra esse dúbio grupo de pessoas que deveremos arremeter com zelo, ressentimento ou indignação, a fim de vendermos a eles os nossos bens? Devemos atacar um punhado de gente infeliz em sua hora de necessidade e exercitar sobre eles uma espécie de compulsão religiosa? Se não queremos fazer tudo isso, se nosso julgamento final deve ser que a forma ocidental do cristianismo foi, também ela, apenas um estágio preliminar para a completa ausência de religião, que tipo de situação emerge para nós, para a igreja? Existem cristãos sem religião? Se a religião é apenas uma vestimenta do cristianismo – e se mesmo essa vestimenta já teve diferentes aspectos em diferentes épocas – o que é então um cristianismo sem religião?


E se a forma ocidental do cristianismo foi apenas um estágio preliminar para a completa ausência de religião?

Barth, o único a começar a trilhar essa linha de raciocínio, não levou-a até o final, mas chegou ao positivismo da revelação, que em última análise é essencialmente uma restauração. Para o trabalhador comum sem religião (ou para qualquer outro homem) não há lucro algum aqui. As perguntas a serem respondidas devem ser certamente as seguintes: o que significam uma igreja, uma comunidade, um sermão, uma liturgia, uma vida cristã, num mundo sem religião? Como se fala de Deus sem religião – isto é, sem as pressuposições temporalmente condicionadas de metafísica, introspecção e assim por diante? Como se fala (ou talvez agora não possamos nem mesmo “falar” do modo como estávamos habituados a fazer) de um modo “secular” sobre “Deus”?

Em que sentido somos cristãos seculares e sem religião, em que sentido somos a “ek-klesia”, os que são convocados, sem olharmos para nós mesmos de um ponto de vista religioso como especialmente favorecidos, mas ao contrário pertencendo ao mundo de modo completo? Nesse caso Cristo não é mais um objeto de religião, mas algo inteiramente diferente: é realmente o Senhor do mundo. Mas o que isso quer dizer? Qual é o lugar de adoração e de oração numa conjuntura sem religião? Assumirá a disciplina secreta, ou alternativamente a diferença entre o último e o penúltimo, uma importância nova nesta situação?


Como se fala de um modo “secular” sobre “Deus”?

Preciso parar por hoje, para que a carta posso partir imediatamente. Devo escrever de novo dentro de dois dias. Espero que você entenda mais ou menos o que estou querendo dizer, e que não ache muito enfadonho. Adeus por enquanto. Não é sempre fácil escrever sem um eco, e você deve me perdoar se isso faz das minhas cartas algo como um monólogo.


Penso muito em você.


Seu Dietrich
"


Dietrich Bonhoeffer a Eberhard Bethge,
do campo de concentração de Tegel
30 de abril de 1944

sexta-feira, 20 de maio de 2011

CEDO DEMAIS

"...não importa qual seja o poder de Deus, o primeiro aspecto de Deus jamais é o do Senhor absoluto, do Todo-Poderoso. É o do Deus que se coloca no nosso nível humano e se limita."
Jacques Ellul em Anarquia e Cristianismo

Na história cheia de contrastes do cristianismo, o maior contraste talvez esteja no quão rapidamente os cristãos aprenderam a ignorar as terríveis exigências das palavras e do exemplo do homem que pretendiam seguir. Em que, de todos os heróis cristãos, ninguém tenha sido historicamente menos ouvido e menos levado em conta do que o próprio Jesus.

Mas se Jesus é como afirmava ser a ressurreição e a luz do mundo, a verdade, o caminho e a vida. Se, como ele dizia, não se pode esconder uma cidade edificada sobre o monte, de que forma os cristãos conseguiram manter-se por dois mil anos praticamente a salvo da sua mensagem?

Parte importante do problema pode ter sido, paradoxalmente, a extraordinária e crescente popularidade que o cristianismo foi alcançando ao longo dos seus primeiros três séculos de história. Mesmo antes que um ponto final houvesse sido colocado nos livros do Novo Testamento, a nova e revolucionária doutrina do Caminho se propagava à velocidade da língua por mercados, bazares, casas, sinagogas, teatros, tribunais, palácios e escolas de filosofia.

Constantino foi o primeiro imperador romano a professar e organizar o cristianismo como religião no Concílio de Nicéia em 325, e posteriormente, em 392, Teodósio I proclama o cristianismo religião oficial do Império Romano. Em pouco mais de trezentos anos um professor rebelde de um canto remoto do globo era consagrado como o Deus diante do qual se dobrava o imperador de toda a terra.

Nesse sucesso espetacular pode estar a semente do fracasso histórico do cristianismo em representar adequadamente o seu Rei e as idéias que ele defende.

O apóstolo Paulo havia instado Timóteo que transmitisse diligentemente, e através do seu próprio exemplo, o conteúdo da mensagem a discípulos idôneos, capazes de passá-lo adiante sem qualquer deturpação. Porém o discipulado nos moldes estabelecidos por Jesus e pelos apóstolos era um processo lento e exigente, uma exigência que o sucesso formidável do cristianismo primitivo não se podia dar ao luxo de manter. Jesus e sua religião tornaram-se tão populares que as pessoas queriam abraçá-los mesmo antes de saber do que se tratavam e a que vinham.

Naquele tempo, como ainda hoje e pelos mesmos motivos, as pessoas eram convidadas a adotar e defender o cristianismo muito antes de serem ensinadas a discernir por si mesmas as idéias e valores que o Cristo havia adotado e defendido. O cristianismo foi desde cedo produto mais popular do que Jesus. A etiqueta tornou-se instantaneamente mais famosa e mais desejável do que o modelo.

As pessoas se convertiam como moscas, abandonando em massa suas religiões ancestrais em favor da nova e irresistível onda, que combinava os ideais elevados do estoicismo com o misticismo de Platão. De uma hora para outra o empoeirado Filho do Homem tornou-se o herói unânime de todo o mundo conhecido.

Jesus saiu, naturalmente, prejudicado com essa inusitada glória. Como diz Jorge Luis Borges, "a fama é uma espécie de incompreensão: talvez a pior".

Em comum com os romanos e bárbaros, posso ter também adotado o cristianismo cedo demais. Versões disneyficadas da vida de Jesus foram impressas em mim muito antes que eu pudesse conceber Jesus como o homem completo e complexo que aparece nas páginas do Novo Testamento.

Olhando para trás, eu vejo que eu estava pronto para admitir Jesus como Deus muito antes de ser capaz de reconhecê-lo como pessoa notável, divulgador de idéias incomuns, proponente de improvável estilo de vida. Pensar em Jesus como Deus logo cedo foi, para mim, parte fundamental da estratégia de anular qualquer coisa que ele tivesse dito, feito e exigido.

Afinal de contas o sujeito era Deus, maior contraste entre ele e os homens não poderia haver. Nada que dizia respeito a ele poderia vir jamais a dizer respeito a mim. Aceitando Jesus como Deus eu havia, paradoxalmente, sido imunizado contra suas palavras e suas idéias e sua vida e seu exemplo, contra a sua pessoa.

A divindade de Jesus permanecia, no entanto, coisa ligada à religião que eu professava, e não a qualquer convicção pessoal. Era a "crença correta", requisito para que eu me mantivesse sensatamente ligado à religião dos meus pais sem causar maiores problemas a eles e a mim.

Quando encontrei-me finalmente, depois de evitá-lo por muitos tempo e de todas as formas, aos pés do Jesus homem, quando senti-me definitivamente esmagado pela singularidade do seu pensamento, de suas demandas e sua conduta, quando me achei diante do personagem complexo e inclassificável, do caráter puro, espertíssimo e inconformado, do homem inteiramente terno, intransigente, flexível e irrefreável, somente então a possibilidade daquele sujeito ser realmente Deus cruzou minha mente e meu coração.

Descobri que não havia ninguém que eu admirasse mais do que aquele louco crucificado, e pela primeira vez sua vida pesava para mim tanto quanto sua morte.

Cheguei à conclusão de que somente alguém que ousou ser e provar-se tão extraordinariamente homem tinha cacife para afirmar-se Deus.

O ÚLTIMO CRISTÃO




"A questão é simples. A Bíblia é muito fácil de entender. Mas nós, cristãos somos um bando de vigaristas trapaceiros. Fingimos que não somos capazes de entendê-la porque sabemos muito bem que no minuto em que compreendermos estaremos obrigados a agir em conformidade. Tome qualquer palavra do Novo Testamento e esqueça tudo a não ser o seu comprometimento de agir em conformidade com ela. 'Meu Deus', dirá você, 'se eu fizer isso minha vida estará arruinada. Como vou prgredir na vida?'.


Aqui jaz o verdadeiro lugar da erudição cristã. A erudição cristã é a prodigiosa invenção da igreja para defender-se da Bíblia; para assegurar que continuemos sendo bons cristãos sem que a Bíblia chegue perto demais. Ah, erudição sem preço! O que seria de nós sem você? Terrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo. De fato, já é coisa terrível estar sozinho com o Novo Testamento."
Sören Kierkegaard

A MINHA PORÇÃO É O SENHOR



Um estudo realizado por um professor da Universidade de Cornell e seu irmão, pastor presbiteriano mostrou que o tamanho das porções e dos pratos representados nos quadros da Última Ceia têm aumentado sensivelmente no decorrer do último milênio.

As descobertas sugerem que o fenômeno de servirem-se porções maiores em pratos maiores, que leva as pessoas a comerem mais do que deveriam, tem se acentuado gradualmente no mesmo período.

Os pesquisadores analisaram 52 pinturas da Última Ceia, e descobriram que nos últimos mil anos o tamanho do prato principal cresceu progressivamente 69 por cento, e o tamanho do pão cerca de 23 por cento.

Fonte: Reuters