“As pessoas dizem que precisamos ter Cristo no coração. Cristo no coração é poético, mas não muito prático. Precisamos dele em nossas mãos, pés e ouvidos como uma lembrança de que não podemos pecar...”
Foi com essas palavras, baseadas no capítulo 29 de Êxodo,
versos 19 e 20, que um amigo pastor fundamentou seu sermão de domingo.
Não nos víamos há algum tempo, então decidi visitá-lo em sua
igreja. Na esquina já se ouvia o som da congregação cantando. O culto era animado
com muitas canções. Em determinado momento, o pastor convidou algumas pessoas a
subirem ao púlpito. Elas seriam apresentadas à congregação. Eram os novos
membros. Após os testemunhos individuais de conversão, o pastor convidou a
igreja a ler vinte rigorosas regras, ou condições para os aspirantes a membros.
O pastor numerava uma a uma, ao passo que a igreja recitava cada “preceito” em uníssono.
Logo em seguida, meu amigo pastor deu início ao seu sucinto
e prático sermão.
Resumidamente a mensagem ressaltava a necessidade de se
viver uma espiritualidade mais prática em vista das tentações desse mundo. Ele
dizia repetidamente não admitir pessoas que se pretendiam cristãs, entregarem-se
a mundanismos como ouvir música secular, por exemplo. Então, a solução para o risco
de uma iminente apostasia, era adotar criteriosamente um padrão de conduta mais
objetivo, mais enérgico e mais eficaz do que recorrer a metáforas do tipo “ter
Jesus no coração”, que soaria muito poético e belo, porém nada “prático”
Lendo certa vez um artigo sobre comportamento em uma revista
bastante popular, um psicólogo expunha a noção de que uma das marcas que definem a condição
de psicose é a
incapacidade de compreender o mundo em termos simbólicos. No mundo do psicótico
não existe metáfora, parábola, representação, poesia, associação ou alusão. Não
há jogo de significações. Seu pensamento, que equivale à sua própria experiência,
é rigorosamente concreto e literalista. Já um neurótico, ou seja, uma pessoa
normal enxerga uma palavra cercada por uma aura sempre repleta de sentidos,
interpretações, referências, metáforas e ambivalências. Para o psicótico, não
existe dúvida nem ambivalência: significante e significado serão sempre uma
mesma coisa. Para o psicótico, uma experiência nunca é refletida por outra.
Nada remete: a representação é a própria coisa em si, e tudo que existe é o
literal.
As características
dessa condição tornam o psicótico quase sempre imune à psicanálise, que demanda
a resignificação de simbolismos e a recriação de mitos e metáforas. Como para o
psicótico não existem mitos nem metáforas, tudo é tomado rigorosamente ao pé da
letra, tudo é concreto, exato e prático.
Neurótico como sou, não pude deixar de encontrar na
mensagem do meu amigo pastor sua própria metáfora. Afinal o próprio texto citado
de Êxodo sobre aspergir sangue nas pontas das orelhas e dos polegares das mãos e
pés direitos de Arão e de seus filhos, muito mais que uma prática ritual, não representava
uma metáfora, um alusão a algo porvir?
Uma “espiritualidade prática” é uma espiritualidade doente.
Cristo nunca nos forneceu insumos para uma “espiritualidade prática”. Ao
contrário, ele só fez dificultar a nossa vida. Ele sustentava
a escandalosa noção de que Deus não aceita as pessoas com base em desempenho
moral, pureza sexual, ou coerência na observância religiosa, mas unicamente com
base em seu próprio cavalheirismo. Aquilo que a maioria das igrejas prega com reservas
e exceções, e que Bíblia chama de graça.Somos psicóticos funcionais, sem verdadeiro acesso à poesia e à metáfora. Psicotizamos a própria experiência.
Cristo expõe nossa psicose, nossa incapacidade de entender o que quer dizer “nascer de novo”.
“(...) Na verdade, na verdade te digo que aquele que não
nascer de novo, não pode ver o reino de Deus. Disse-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho?
Pode, porventura, tornar a entrar no ventre de sua mãe, e nascer?”
João 3:3 e 4
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